Existe um indicador simples
que se devia usar nas nossas conversas: quanto mais alguém fala da ruína
nacional, tanto mais essa pessoa trabalha precisamente para isso. Todas as
desgraças nacionais foram causadas por movimentos que pretendiam salvar
Portugal da desgraça. Isto, que foi claro em toda a história, é bem evidente hoje.
Ninguém duvida que um dos
maiores problemas actuais é um Estado obeso que com o seu despesismo estrangula
a actividade nacional e cria uma dívida enorme, que nos assombrará durante
muito tempo. Qualquer um entende que uma das nossas tarefas essenciais é reduzir a despesa pública a um nível
que o País consiga suportar, sem ser mais oprimido por impostos.
É evidente que isso não é
impossível, ou sequer difícil, pois ainda há poucos anos vivíamos razoavelmente
com muito menos gastos, que nunca deixam de crescer. Não se diga portanto que
os cortes fazem perigar a vida, liberdade, direitos ou dignidade pessoal. A
única coisa que nos pode arruinar é a teimosia em insistir numa via ruinosa de
despesismo.
Estas são ideias de uma
simplicidade e clareza manifestas, que qualquer pessoa honesta entende e
admite. É pois espantoso que largas camadas da nossa elite, de todos os
quadrantes políticos, não só nunca digam isto, mas estejam activamente
empenhadas em lutar precisamente contra esses cortes indispensáveis. Fazem-no
dizendo defender o País da terrível ruína a que alegados neoliberais,
economicistas, corruptos e traidores o estão a condenar, simplesmente por
pretenderem acertar as contas.
O problema é complexo pois
muitos dos que dizem isto são pessoas honestas, inteligentes e razoáveis. Não
há dúvida que boa parte dos que se opõem às indispensáveis reformas são
oportunistas, mercenários e parasitas, pretendendo apenas defender as suas
benesses, enquanto outros são agitadores, desordeiros e subversivos, em busca de
uma boa insurreição.
Mas não podemos ignorar os
inúmeros cidadãos sérios e serenos, tanto ou mais revoltados que os outros.
Como podem esses, que dizem falar em nome da salvação nacional, constituir o
principal obstáculo ao único caminho que nos salvará da ruína?
O buraco é tão grande que o
Governo tem de cortar coisas boas: pensões e salários, apoios e subsídios,
centros escolares e hospitalares, câmaras e juntas de freguesia, carreiras de
transportes e múltiplos outros serviços. Faz isso, não por ser incompetente,
maldoso, fascista ou traidor. Tem de cortar porque não há dinheiro para o
pagar. Não se consegue cobrar mais impostos e ninguém nos empresta
indefinidamente. Isto é óbvio, como também é óbvio que as coisas a cortar são
boas. Mas têm de ser cortadas. E quanto mais tarde se cortarem, como piora a
situação financeira, mais teremos de cortar.
Devíamos ter começado a cortar
sério em 2008, quando começou a crise; em 2011 quando chegou a troika; ou em
2014 quando ela vai embora. No entanto, a verdade é que pouco foi cortado a
sério, além de alguns salários e pensões, que são fáceis de repor. Não foi por
falta de esforço e vontade, pois a troika bem forçou o Governo. Foi porque, cada vez que se identificou
algo para cortar, surgiu imediatamente uma enorme multidão de cidadãos sérios e
serenos, inteligentes e razoáveis, completamente revoltados a falar em ruína do
País. Sem perceberem que o seu bloqueio é que realmente arruína o país.
Todos sabem que somos
europeus, e por isso temos direito a um estilo de vida e qualidade de serviço
de nível europeu. Apesar de não produzirmos como a maior parte dos outros
países europeus. Exigimos coisas que os nossos pais nunca viram, mas que hoje
dizemos serem condições indispensáveis à vida civilizada. Sem elas declaramos
não ser possível dignidade e liberdade. Apesar de os nossos pais terem sido
dignos e livres sem essas coisas que inventámos nos últimos 20 anos com
dinheiro alheio; apesar de produzirmos pouco mais do que eles. Aumentámos
exigências, não possibilidades. Esta é a atitude que nos impede de sermos
europeus. A atitude que arruína o País.
Título e Texto: João César das Neves, Diário de Notícias, 06-05-2014
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