José Manuel Fernandes
A Grécia ficou mais perto de
sair mesmo do euro. Os radicais no Syriza têm agora mais força. E a acrimónia
da campanha cortou as pontes entre Tsipras e os líderes europeus. Tudo será bem
mais difícil.
Os gregos dão-se mal com a
democracia. Não é coisa de hoje, é coisa antiga. É pena, mas é assim. E isso
acontece desde o tempo de Tucidides. É como se a atracção helénica pelo abismo
fosse irresistível.
Eu explico-me. Quem leu o
clássico de Tucídides A História da Guerra no Peloponeso encontra
nele uma das mais vigorosas defesas da democracia de todos os tempos – o
discurso de Péricles aos atenienses. Mas também é confrontado com a
descrição de como decisões mal informadas e erradas, mas democráticas, tomadas
livremente pelos cidadãos de Atenas, acabaram por conduzir essa
cidade à catástrofe.
Quando hoje começaram a sair
os resultados do referendo grego lembrei-me desse episódio de há 25 séculos e
não pude deixar de estabelecer o paralelismo. Na Grécia, ontem como nesses
longínquos tempos, o povo votou, mas parece tê-lo feito sem ter noção do que
estava realmente a escolher. Talvez o entenda nos próximos dias. Talvez o tenha
já começado a entender com a demissão surpresa de Yanis Varoufakis.
Estas coisas acontecem mesmo
com decisões democráticas: por vezes conduzem ao abismo, na melhor das
hipóteses a um beco sem saída.
Tal como em Janeiro, quando
escolheram o Syriza e acreditaram nas suas promessas irrealistas, os gregos
voltaram a escolher a ilusão. Fizeram-no até com sentido dramático, fazendo jus
à sua história e aos mitos da sua memória colectiva. Mas criaram mais
dificuldades do que aquelas que já tinham.
Vamos lá pensar com alguma
frieza e, para que os termos sejam claros, vamos pensar no quadro do relatório
do FMI que tão citado foi na campanha eleitoral. Esse relatório diz três
coisas, mas só uma tem sido referida – a necessidade reestruturar a dívida
grega. As outras duas é que o país precisa de pelo menos mais 50 mil milhões de
euros de ajuda externa e que terá de continuar a fazer as reformas dolorosas
que são conhecidas pelo nome de “austeridade”.
Vejamos quais as
possibilidades de fazer acontecer essas três coisas em simultâneo.
Primeiro que tudo, é
necessário que os gregos aceitem medidas duras, reformas profundas que vão
exactamente na direcção contrária ao programa e à ideologia do Syriza. Depois
do voto desde domingo, com uma vitória tão folgada do não, Tsipras diz que
ganhou poder negocial junto dos credores mas omite algo essencial: a margem da
vitória também reforça a posição da ala mais intransigente e radical da
coligação a que preside, a mesma ala que o obrigou a convocar o referendo sob a
ameaça de chumbar o acordo com os credores no Parlamento. Ou seja, a margem de
Tsipras para negociar com os credores é hoje mais estreita do que era há uma
semana.
Depois, é preciso que os
países credores aceitem emprestar mais dinheiro a uma Grécia que se recusa a
reformar e, ao mesmo tempo, quer um novo perdão de dívida. Como se pode ver
neste gráfico que foi preparado pelo Barclays, há países mais pobres do que a
Grécia – como Malta, a Eslováquia, a Eslovénia ou a Estónia – que enterraram na
dívida grega valores que correspondem a quatro ou mesmo cinco por cento do seu
PIB. Acham que esses países estão disponíveis para perder uma parte desse
dinheiro e, ao mesmo tempo, entregarem a Tsipras ainda mais dinheiro dos
seus contribuintes? Nas reuniões do Eurogrupo eles têm sido os mais duros com a
Grécia, e percebe-se facilmente porquê.
É assim que chegamos ao
terceiro ponto. O do perdão da dívida exigido por Atenas não apenas
aos alemães (fica sempre bem atacar os alemães), mas a todos os países do
euro, Portugal incluído. Aqui a questão não é saber se a dívida precisa ou não
de ser reestruturada – na minha opinião, precisa, já o escrevi muitas vezes. A
questão é saber como isso se faz.
Em 2011 fez-se obrigando os
credores privados a perderem 100 mil milhões de euros (entre eles estavam
bancos portugueses, e parte do dinheiro da nossa troika foi usado para
compensar essas perdas). Em 2012 voltou a fazer-se uma reestruturação da
dívida, nessa altura dando à Grécia condições muito especiais que lhe permitem
não pagar juros de boa parte dos empréstimos europeus durante dez anos. O gráfico
seguinte, que fui buscar a um artigo do economista anti-austeridade Paul De Grauwe,
mostra o peso que o pagamento de juros tem em diferentes economias, e nele é
possível ver o efeito desse período de carência de que os gregos beneficiam:
apesar de terem uma dívida muito maior do que a nossa, a Grécia paga neste
momento muito menos juros.
Esta segunda reestruturação da
dívida grega foi feita de forma discreta, sem alarde, de forma a que fosse
aceite pelos líderes europeus, sobretudo pelas opiniões públicas dos países
credores. O que estava prometido à Grécia é que, na negociação do terceiro
resgate, algo de semelhante voltaria a acontecer. No fundo, antes de mostrarem
de novo a sua boa vontade e enterraren mais dinheiro no país, os credores
queriam ver a Grécia no bom caminho. Se isso acontecesse, lá viria nova
reestruturação.
Entretanto, nem sequer há
muita pressa: com as generosas condições actuais, Atenas não tem a corda na
garganta. Pior estamos nós, ou a Itália, ou mesmo a Irlanda. Havia pois tempo
para resolver o problema de forma civilizada, cordata e sem gerar a oposição
das opiniões públicas dos países credores.
O que aconteceu nos últimos
meses deitou isto tudo por terra. Por um lado, ninguém – mas mesmo ninguém –
confia, à mesa do Eurogrupo ou do Conselho Europeu, nos líderes gregos e, por
isso, ninguém acredita que eles façam as reformas que justifiquem uma nova
reestruturação voluntária da dívida. Já os líderes gregos, “para
salvarem a face” e aceitarem algumas das medidas mais duras, exigem um
compromisso sonoro de corte da dívida. Ora é precisamente isso ninguém
está em condições de lhes oferecer, sobretudo porque esses mesmos gregos estão,
ao mesmo tempo, a pedir mais dinheiro.
As reacções agastadas da noite
do referendo – com destaque para as que foram protagonizadas por líderes
socialistas e social-democratas – mostram como o estilo diplomático grego, tão
subtil como o de um elefante numa loja de porcelanas, torna virtualmente
impossível conciliar interesses tão diferentes entre gente que se detesta
cordialmente (o cordialmente é eufemismo).
É por isso que
suspeito que a decisão democrática dos gregos os conduzirá quase
directamente à saída do euro. Já houve dirigentes europeus que o verbalizaram,
a banca internacional começou a considerar que o Grexit é mesmo uma
inevitabilidade e já começou a dizê-lo logo na noite do referendo. Pode
acontecer já ou pode acontecer com a dificílima negociação do terceiro resgate,
lá mais para diante – mas é cada vez mais provável que aconteça mesmo.
Não vai ser bonito de ver,
mesmo se houver uma “ajuda humanitária de emergência”, o que já foi sugerido
mas colocará a Grécia na posição de ser tratada como o Haiti ou a
Indonésia depois de uma catástrofe natural. Com uma diferença: as feridas,
neste caso, foram auto-infligidas. Primeiro, por um governo irresponsável de
radicais que já conseguiram tornar a vida dos gregos bem mais difícil do que
era há apenas seis meses. Depois, por uma larga maioria de eleitores que, tal
como os seus antepassados do tempo de Tucídides, escolheram democraticamente
darem um tiro na própria cabeça.
Pode haver, e vai haver,
conversas e um real esforço de aproximação vindo de muitos líderes
europeus, por causa do mito da irreversibilidade do euro e por considerações
geopolíticas, mas não duvido que, como alguns já deixam transparecer
abertamente, a sua vontade seja a de pedir a Tsipras que pegue no seu
saquinho de brasas e vá fazer inferno para outro sítio. Como Varoufakis já
foi.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
6-7-2015
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