Carina Bratt
“Contam meus restos de dia que a tua despedida elaborou o
futuro em que me vejo metida agora”.
Aparecido Raimundo de Souza, em
“Caderno de segredos”.
Quando a despedida chega, aumenta a saudade. Triplica. A saudade é algo que não se define, apenas se sente. Seja por um ente querido que se foi sem tempo de dizer adeus, seja por estar presente, ali ao nosso lado, mas com os movimentos limitados, tornando-o ausente para as pequenas coisas do dia a dia.
Meu pai era uma despedida diária. Eu
não sabia se na manhã seguinte ele estaria ao nosso lado, ou se resolveria,
durante a noite, achar que se cansara de viver e se despediria a sua maneira,
em silêncio, sem querer que chorássemos diante da imensidade da sua viagem sem
volta.
Uma das coisas que marcava papai. E a
mim. A doçura na voz. Ela emoldurava a sua expressão cansada, pesada, sofrida
pelos anos vividos. Oitenta e nove primaveras chega um instante, pesa nos
janeiros, enluta os meses, desgosta, desgasta, definha o futuro. Papai, apesar
disso, suportava tudo. Aguentava os dissabores e percalços sem dar um ai.
Penso que resolveu partir quando todos
dormiam para não incomodar a mim e a mamãe. Embora perto dele (no quarto ao
lado, eu dormia no quarto ao lado) achegada demais do seu leito, perto, quase a
roçar as suas mãos, em face de uma doença degenerativa, não o vi partir. Não o
vimos partir.
Agora, seja acordada, ou dormindo,
seja em sonhos ou pesadelos, em lembranças de momentos imorredouros, eu o vejo
deslizando, de mansinho, a passos curtos, em direção à porta da sala. Caminhando
suavemente pelo corredor comprido, os olhos cintilando no brilho gélido da
morte que o esperava do lado de fora.
A morte é uma experiência com a qual
aprendemos o sentido sério e austero da vida. A sua essência é exatamente a
sacralidade do desconhecido. O não sabermos o que nos espera, o que nos aguarda
(apesar das religiões ensinarem que existe outra estrada com muitas
ramificações à felicidade) incrustrada num mundo diferente deste, sem as
violências e as fraquezas enraizadas com as quais nos deparamos cotidianamente.
Apesar dessa certeza incerta, da
convicção evidente, sempre ficará no ar, a ambiguidade, a angústia bailando
indefinidamente em relação ao que nos acontecerá, de fato, após a transposição
da fria e escura passagem da sepultura.
A despedida, portanto, é um elo que
não se liga que não se entrelaça que não se vincula. É uma junção apartada,
distanciada, desencadeada do verdadeiro sentido de juntar, num mesmo amplexo, o
abraço febril e caliente de tudo aquilo que está longe de ser verdadeiramente
uma aliança.
Com isso caem por terra às benfazejas
adesões que ela venha ou possa vir a representar. Assim como no dizer de
François Rabelais o “hábito não faz o monge”, tampouco o “hálito a boca bonita
e bem torneada”, a despedida não afortuna a saudade para que diminua de
intensidade. Norte idêntico, não exime a dor consternada de um coração em
pedaços.
Menos ainda cicatriza as feridas que
ficaram pesarosas, como chagas abertas. Entender a despedida é como procurar no
palheiro a direção das origens da vida, a agulha pontuda nos cutucando pela
busca do porque de estamos aqui.
A despedida é ainda mais abrangente na
sua demência insana louca e desvairada. Nos tira o prazer do contato, a alegria
do trato, da camaradagem, da intimidade familiar. Sobretudo nos rouba o contorno periférico do
acompadramento, bem como da fraternização.
Mesmo pesar nos sufoca o raciocínio
numa deslógica de eterna “Via Crucis”, aquela por onde Jesus carregou o madeiro
do Pretório até o Calvário. A despedida
é um mal necessário (desnecessário, talvez) supérfluo, madraço, adiáforo, entretanto,
nos deixa com os sentidos voltados para o alto da étagère.
De lá de cima, meu papai me sorri
matreiro, me contempla de uma fotografia de quando eu tinha cinco anos. O resto
do meu eu, em festa, nessa visão celestial, se engalana, se agiganta, se
condensa, se acalma, se adoça, se aplaca, se ameiga e se satisfaz na sua
cumplicidade.
Deus, que papai de dentro da sua
saudade... de dentro da minha saudade...
da nossa, minha e de mamãe, continue vivo, radioso, exuberante e
sagaz... e que a nossa despedida não seja somente um mero aceno de adeus. Em
contrário: o começo de um laço de consanguinidade que jamais se romperá, ainda
que os anos perdurem i... n... d... e... t... e... r... m... i... n... a...
d... a... m... e... n... t... e...
Título e Texto: Carina
Bratt, Secretária e Assessora de Imprensa do Jornalista e Escritor Aparecido
Raimundo de Souza. De Brasília Distrito Federal. 18-8-2018
"Todos que partem deixam muito de sí e levam muito de nós"
ResponderExcluirDevemos prosseguir...continuar escrevendo a nossa própria história.
Finalmente algo bom, do qual gostei e sinto pesar por todas as perdas no universo. Procuro sempre esconder os sentimentos, porque o desespero afronta muito mais os outros que a nós mesmos. Meu pai estava no hospital, alojado num acampamento de guerra. Naquela manhã que iria visitá-lo, faleceu enquanto eu tomava banho. Só pude vê-lo no cemitério. A minha raiva ficou no sistema de saúde. O parkinson já o afetava e por incrível que pareça faleceu de osteoporose. Suas costelas já não aguentavam seus pulmões. Discordo que os que partem levam muito de nós. Somos nós que levamos muito deles. Por vezes me sinto o próprio. Esse ciclo natural deveria ser aceito por todos. Quando eu voltar para a natureza, me sinto reencarnado no meu filho. E sempre lhe digo que não tenha saudades, tristezas pois o caminho não nos leva para eternidade, apenas nos leva para onde viemos. Na vida nunca podemos voltar, somente a morte nos leva de volta. Quando me falam do que fiz, deixei de fazer eu digo que rigorosamente:
ResponderExcluirQuando morremos viramos números.
bom dia...