A CPI da Covid é uma trapaça histórica que se manterá distante da principal questão: a inépcia e a malversação de dinheiro do Erário por parte dos que foram encarregados de tratar da covid
J. R. Guzzo
É um fato de conhecimento
comum até nos jardins de infância que nunca se roubou tanto neste país, desde
os incomparáveis governos Lula-Dilma, quanto se roubou agora por conta da
covid. A roubalheira do PT, na verdade, foi distribuída ao longo dos treze anos
e meio de dois governos; a de agora está toda concentrada em pouco mais de um
ano de atividade intensa. Como poderia ser diferente? As “autoridades locais”,
ou seja, os 27 governadores e 5.500 prefeitos do Brasil, ganharam do STF a
tarefa — e plena autonomia — para administrar como melhor entendessem o combate
à epidemia. Como ficou claro desde o primeiro dia, nenhuma decisão “local”
poderia ser modificada, nem muito menos vetada, pelo governo federal; ao
contrário, por ordem do STF, a União foi legalmente proibida de mexer uma palha
em qualquer coisa que os governadores e prefeitos fizessem. Só estava obrigada
a soltar verba — e pagar o “auxílio de emergência” a quem perdeu trabalho e
renda por causa da repressão ao trabalho, à produção e à atividade econômica
imposta pelas “autoridades locais”. É óbvio o que iria acontecer com todo esse
poder distribuído — sem nenhum controle — a tão pouca gente: surtos de
incompetência, desperdício em massa de dinheiro público e ladroagem explícita.
Depois do “Mensalão” e do “Petrolão”, chegou a vez do “Covidão”.
Que tal parar de fingir por uns minutos? Todo mundo sabe desde criança que político brasileiro rouba; nem todos, é claro, mas a maioria mete a mão com o desespero de um homem-bomba muçulmano ou, então, se faz de bobo e deixa que roubem o que quiserem em volta de si. Por que diabo, então, seria diferente nesse caso? Só por que é uma doença? Não seja por isso; no governo Lula, por sinal, roubaram até sangue dos hospitais, naquele notável escândalo da máfia dos vampiros que deixou lembranças até hoje. Dinheiro é dinheiro. Se vem com a covid ou com as empreiteiras de obra, com o vírus ou com o pré-sal, tanto faz — o que interessa é a “verba liberada” e o dinheiro depositado no banco. O resto é conversa de CPI e para analista de telejornal do horário nobre.
Governadores, prefeitos, seus
familiares, os amigos e os amigos dos amigos não contaram apenas com essa
decisão sagrada do STF, e com o apoio quase integral das “instituições”, do
Brasil “que pensa” e dos meios de comunicação. Mais que isso, tiveram a bênção
do “estado de emergência”, um pé de cabra legal que permitiu aos gestores
locais gastarem dinheiro público sem controle nenhum: sem concorrência pública,
sem licitação, sem necessidade de prestar conta. Se já é uma dificuldade
extrema segurar a roubalheira com todas as regras e contrarregras que existem
por aí, imagine-se, então, o que acontece quando praticamente não há controle
algum. Mais: ninguém aqui está falando de uns trocados. As “autoridades locais”
receberam ao longo do último ano, em verbas federais, cerca de R$ 60 bilhões
para cuidar da epidemia — dinheiro que o Tesouro Nacional não tem, mas que
sempre é fácil tirar dos impostos que a população paga todos os dias, a cada
vez que acende a luz ou põe um litro de combustível no tanque. Hoje em dia, com
essa história de dizer 1 bilhão aqui, 1 bilhão ali, pode parecer banal, mas 60
bi é uma imensidão em termos de dinheiro. Para se ter um começo de ideia: o
total dos gastos federais com a educação, em um ano, ficou em R$ 40 bilhões. A
covid comeu uma vez e meia isso aí.
Aparecem agora os heróis da mídia no papel de resistentes ao “fascismo”
Para completar o seu sonho de
consumo, as “autoridades locais” contaram com a ajuda vital do Ministério
Público, da Polícia Federal e da mídia em geral, que estão de olhos
praticamente fechados há mais de um ano, quando se trata de corrupção na covid.
Há exceções, claro: o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, foi posto
para fora do palácio em agosto do ano passado, destituído e até preso, no meio
de uma tempestade de acusações de roubo na gestão da epidemia. Mas Witzel,
claramente, é um caso fora da curva. Num Estado que já teve um colosso na
história da corrupção universal como o ex-governador Sérgio Cabral, com mais de
200 anos de cadeia nas costas por roubar de tudo (para não falar de Anthony
Garotinho e sua mulher, Rosinha), conseguir ser demitido do governo, como ele
foi, é realmente qualquer coisa de paranormal. Na vida mais normal, a
governadorzada e a prefeitada deitaram e rolaram, sem que as denúncias
apresentadas contra eles tenham atraído a real atenção do MP, da PF ou da
imprensa; saiu alguma coisinha aqui, outra ali, mas absolutamente nada que
lembrasse, nem de longe, a fúria moral de todos quando os acusados fazem parte
da sua lista negra.
Diante de mais essa calamidade
— uma epidemia que ultrapassou os 400 mil mortos, incompetência maciça de
governos estaduais e prefeituras e corrupção especialmente perversa —, o Senado
faz o quê? Faz exatamente o que as “instituições democráticas” do Brasil sempre
fizeram: enterra o problema real, salva os culpados e dá às piores figuras,
mais uma vez, a oportunidade de virarem heróis da mídia no papel de resistentes
ao “fascismo”, à “direita” e ao “genocídio”. A questão, se querem mesmo
investigar alguém, é a inépcia e a malversação de dinheiro do Erário por parte
dos que foram encarregados de tratar da covid — as “autoridades locais.” Em vez
disso, investigam o governo federal — que não tem quem o defenda, dentro e fora
do mundo político, e vai ficar apanhando quieto até os arquiduques da
“Resistência” tirarem tudo o que podem da CPI e partirem para outra. É desastre
com perda total.
Como acontece quase sempre na
vida pública brasileira, a trapaça das “investigações” se repete como farsa, ou
como espetáculo de humor macabro. Nada revela tão bem o deboche de tudo isso
quanto a lista de membros da CPI. O presidente é um senador do Amazonas
envolvido até o talo na confusão: sua própria mulher, além de irmãos, já foram
presos por ladroagem na área da saúde — da saúde, justamente, dentro de um
escândalo que se arrasta há cinco anos no Estado e na capital, Manaus, e é
objeto das operações Maus Caminhos e Cash Back, da Polícia
Federal. O representante titular do PT é o senador Humberto Costa — ninguém
menos que o “Drácula” da lista de políticos comprados pela construtora
Odebrecht, codinome que recebeu por seu envolvimento junto à máfia que roubava
sangue da rede pública de hospitais quando ele era ministro da Saúde de Lula.
Há outra estrela da relação de salteadores da Odebrecht: o “Whiskey”, apelido
do senador Jader Barbalho, do Pará. (Deu para entender a presença de Amazonas e
Pará na CPI? Pois então: são exatamente os dois Estados, fora o Rio, onde mais
se roubou neste ano de covid.)
O ponto alto do show,
entretanto, é o senador Renan Calheiros no papel de relator da CPI, nada menos
que isso. Renan é um dos membros mais enrolados com o Código Penal que dão
expediente nesse espantoso Senado brasileiro — não deve haver, aliás, caso igual
ao dele em nenhum Senado do mundo. Ou seja: os políticos não apenas insultam a
população com a sua CPI; também fizeram questão de pisar em cima, com a
nomeação de Renan. É como se estivessem dizendo: “Isso aqui é o Senado Federal.
Polícia, promotor e juiz, aqui dentro, são o Renan e a sua turma”. Não é
nenhuma surpresa, por sinal, que o senador que foge da lei há 30 anos tenha se
tornado um grande estadista aos olhos da mídia brasileira de hoje; é claro, ele
se reinventou como marechal de campo da esquerda nacional, líder da oposição ao
presidente da República e apóstolo intransigente da guerra ao “negacionismo”. É
tratado, em consequência, como um gigante da nossa política. Suas declarações
aparecem em todas as primeiras páginas, nos telejornais e nos programas de
rádio. Seu passado, que está presente nos autos, foi “cancelado” do noticiário,
como se diz hoje. Ele não fez nada de errado, nunca. É a estrela da CPI, dos
editoriais e do “campo progressista”. Aboliu-se uma realidade; foi construída
outra em seu lugar. Eis aí a política do Brasil, mais uma vez. É assim que
funciona.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista Oeste, nº 58 30-4-2021
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