Aparecido Raimundo de Souza
Por que tanto tempo assim?!
Esse lapso medonho se deu em face das displicências e esquecimentos dos
consanguíneos. É duro lembrar um ente assim. Cai nos costados da gente, a
noticia, de modo cruel. E, pelo tempo em se saber, a coisa se torna fatal. Dos
parentes mais próximos, o deslembrar é tão repulsivo que chega a dar nojo.
Asco. Revolta. Vovô infelizmente se foi. Não há volta ao “aqui”, bem sei,
porém, ainda hoje, tanto tempo depois, sinto a sua presença. Ouço a sua voz,
percebo seus passos, capto as suas risadas...
O difícil e contínuo sem fim,
é que fica martelando, inexplicável. Se torna um fardo pesado e, quando se tem
a certeza de que a sua figura não será mais vista entre os nossos, a despedida
que não houve, o abraço que não foi dado, o beijo que não consegui lhe
depositar no rosto, o derradeiro adeus que ficou sem endereço, tudo parece se
juntar num conjunto de aflições. Por assim, faz parte de uma ferida aberta na
alma, uma incisão que não cicatriza. E por não estancar, se torna mais
contundente. Tão divorciada que esmaga o egresso alacranando os dias porvindouros.
Vovó Marta, coitada, outra
bondade insubstituível que igualmente virou espaço. Cresceu entre labirintos de
futuros que não chegaram a acontecer. O carisma dela e a sua bondade, me
ensinavam a encarar o amanhã. A sua ternura me abrandava os medos que, de tão
assustadores, me faziam perder o sono, à noite. Difícil não topar com ela, a
vovó Marta querida, ao meu lado, sentada na cama, tentando afugentar os
fantasmas que povoavam a minha infância repleta de lugares inacessíveis, becos
e desvãos, onde se ocultavam bichos papões e outras tantas figuras de sete
cabeças, consequências evidentemente de uma puerícia órfã chegada cedo demais.
A prima Elisa, que eu batizara de Lisa, sempre se fez, depois de vovó, a mais próxima. Tadinha, faleceu recente! Visitava a minha casa todas as manhãs. Chovesse ou fizesse sol, ela não deixava de dar o ar da graça. Tomávamos café juntos, sentados na varanda, um frenteado ao outro, às vezes os corpos colados num roçar sem pecados. Depois ela se levantava ligeira, ajeitando os cabelos longos, a saia redonda curta demais e seguia para o emprego. Trabalhava perto, não tinha como imprimir atraso. Embora tenha se somado dois anos do seu passamento, ainda se faz aqui, alegrando meu agora, que de tão agora, não se desvanece.
A prima Elisa chega todas as
noites, depois que os cômodos, em peso,
se recolhem aos arqueios das estafas cotidianas. Se amolda metafisicamente à
janela do meu quarto. Se aproxima grácil e sutil, silenciosa e tênue, como o vento
ameno balouçando as folhas das árvores do quintal. Para evitar que vá embora
sem nos falarmos, ou sem deixar uma dica da sua estada, deixo uma banda
cissurada. Se, acaso não vem, ou não dou com ela me espreitando, por dormir
demais, é certo, sei por antecipação, que esteve aqui, ou não. O lugar onde
encosta a maciez do rosto, a quentura das mãos pequenas e o afogueamento dos
lábios bem torneados, fica marcado com um beijo do seu batom vermelho.
A prima Elisa morreu aos
vinte. De câncer. Sofreu muito, padeceu horrores. Poderia mesmo afirmar que
comeu o pão que o diabo amassou. Dias antes de fechar o círculo do que restava
do seu infortúnio à vida, ela me disse, no leito de morte do hospital, que
“partia feliz, porque a Via Crucis acabaria”. E como eu fora o único da estirpe
da família que se fez na hora do último suspiro, o derradeiro à quem ela
segurou as mãos e prometeu solenemente voltar sempre que a saudade se fizesse
letárgica demais...
Assim, movido por esse
sentimento penoso e leal, de pura reciprocidade, se ela não vem, eu vou. Viajo em
sonhos. Nessas andanças de encontros além-vida, onde quimeras e realidades se
entrelaçam, se cruzam e se embriagam, vamos levando nossos dias, nossas horas
tão próximas, as conversas cheias de mistérios, a ponto de não nos sobrar tempo
(para ela, de lá, e, para eu, de cá) para pensarmos em dar trelas ao árido
cruciante do exílio imposto.
O meu amigo José Paes também
resolveu levantar acampamento. Com passagem só de ida. No domingo, quando
voltava do restaurante, onde cuidava da cozinha, soube por colegas que seu time
perdeu feio para a equipe rival. E ele, torcedor ferrenho, ficou em estado tão
desesperador que seu coração cansado, batendo em descompasso por tantos
janeiros, resolveu se dar férias por conta. Tento adivinhar a cor do seu
desespero. Os minutos fatais que antecederam ao caixão. Ele estivera no
cardiologista uma semana antes e o médico da família (imagine!) concluíra que o
seu estado de saúde se fazia perfeito, como o de um bebê recém-nascido.
De fato, foi. Perdi meu
companheiro de cinquenta e cinco anos, moleque adulto e sem juízo que adorava
ler as revistas do Tio Patinhas, do Cebolinha, e ver, na tevê, os desenhos do
Tom & Jerry, do Pica Pau e da Pantera Cor de Rosa. Que amava, de paixão, o
Vasco da Gama e devorava os livros de Luiz Fernando Veríssimo e Raymond
Chandler. Sem falar nos romances de Bukowski, que comia com pão e manteiga.
Colecionava todos os discos e CDs de Amado Batista e Chitãozinho & Chororó.
Tenho plena convicção, apesar
de todas as incertezas, que outros mais do meu meio, do meu convívio, do meu
catemerino partirão antes de mim. Ou eu, vai se saber, antes dos que ainda
estão por aqui. Às vezes, quando penso nisso, me sinto como um pássaro
solitário numa gaiola enorme de onde todos os demais da minha espécie voaram. A
gaiola tem a porta aberta, escancarada, mas a minha alma continua submissa,
presa, algemada a esse engradado. Quisera saber do Eterno, se o meu nome no
Caderno da Vida ainda se afigura longe dos seus olhos argutos e vigilantes. Por
mais que pergunte, em orações a resposta D’Ele, não me chega.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, do Rio de Janeiro. 8-3-2022
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