David Nasser, foto: DR |
David Nasser foi o repórter
mais famoso de seu tempo, é uma figura lendária na imprensa brasileira. Por
três décadas ele foi a principal estrela da revista O Cruzeiro, que chegou a ter tiragens acima dos 700.000 exemplares
e foi o veículo mais influente do país entre os anos 40 e 60. Dono de um texto
afiado e de uma incrível disposição para sair em busca de notícias, ele
revolucionou o jornalismo brasileiro. Seus textos eram cheios de elementos
literários. Não deve ser aplicado a ele, embora eventualmente seja aplicado, o
adjetivo ‘polêmico’. Não era polêmico. Era uma figura de poucos escrúpulos, que
dava pouca importância para os fatos e muita importância para o efeito de suas
reportagens. Quando achava que a notícia por si só não tinha muita graça, o
repórter não relutava em dar asas à imaginação. "Se o fato atrapalhasse,
ele punha de lado", resume Jorge Ferreira, um jornalista da época.
Era um homem de imenso talento para escrever e com capacidade aparentemente inesgotável de trabalho.
Escreveu livros de grande repercussão - quase sempre apoiados ou baseados em suas próprias reportagens - e compôs cerca de 300 músicas, algumas de muito sucesso, como Nêga do Cabelo Duro (com Rubens Soares), Canta Brasil (com Alcir Pires Vermelho), Camisola do Dia, Hoje Quem Paga Sou Eu, Atiraste uma Pedra (com Herivelto Martins), Confete (aquela do ‘pedacinho colorido de saudade’, com Jota Júnior), Normalista (com Benedito Lacerda, grande sucesso na voz do amigo Nelson Gonçalves), A Coroa do Rei (com Haroldo Lobo) e até a valsa que ainda hoje serve de vinheta para o fim de ano da Rede Globo: Fim de Ano (‘Adeus ano velho, feliz ano-novo...’), parceria com Francisco Alves.
Mas, além desse aspecto quase
folclórico de sua trajetória (a que se junta a sua atividade como compositor de
quase 300 canções populares), Nasser também teve um lado nefasto. Usou o seu
talento para angariar vantagens e enriquecer, perseguir desafetos e defender
uma monstruosidade como o Esquadrão da Morte.
Imagem: DR |
Os pais de Nasser eram libaneses. David nasceu em Jaú, no interior de São Paulo, em 1 de janeiro de 1917.
Ajudava na renda como camelô,
vendendo bugigangas - pentes, giletes, na Central do Brasil.
Teve meningite, que lhe deixou
seqüelas. Andava com dificuldade (como se estivesse bêbado), tinha os
movimentos das mãos atrapalhados - derrubava coisas, sujava-se e sujava tudo em
volta quando comia, enxergava mal. Começou a trabalhar aos 14 anos, em 1934
como contínuo das empresas Diários Associados
de Assis Chateaubriand. O conglomerado jornalístico reunia no mesmo prédio a
redação dos jornais "Diário da Noite" e "O Jornal", e a
revista "O Cruzeiro".
Capa do nº 34, agosto de 1973 |
Ainda revelou-se um
ficcionista de primeira. Escrevia com dois dedos e para concorrer com Nelson
Rodrigues, que publicava o folhetim Meu
Destino É Pecar, em O Jornal, sob
o pseudônimo de Suzana Flag, aumentando a tiragem do diário, David Nasser
inventou uma personagem para o Diário da
Noite, outra publicação dos Diários
Associados, de Chateaubriand. Os que têm mais de 50 anos não esqueceriam Giselle - A Espiã Nua Que Abalou Paris
que desencalhou das bancas o Diário da Noite. Como jamais havia posto os pés na
capital francesa, conversava com Jean Manzon, fotógrafo parisiense dos Diários
Associados, para dar veracidade à ficção.
Inconformado com os salários atrasados, invadiu a sala do chefe, Assis Chateaubriand: "O senhor deve ter visto que a personagem principal está encostada num muro e vai ser fuzilada no capítulo de amanhã. Chega de trabalhar de graça." O patrão abriu o talão de cheques na hora e pagou a dívida, mas alertou: "Se Gisele aparecer morta, depois de amanhã você acorda desempregado, seu turco ordinário!"
Inconformado com os salários atrasados, invadiu a sala do chefe, Assis Chateaubriand: "O senhor deve ter visto que a personagem principal está encostada num muro e vai ser fuzilada no capítulo de amanhã. Chega de trabalhar de graça." O patrão abriu o talão de cheques na hora e pagou a dívida, mas alertou: "Se Gisele aparecer morta, depois de amanhã você acorda desempregado, seu turco ordinário!"
O paulista de Jaú espalhou sua
fama de bom repórter e foi contratado pelo jornal "O Globo" dirigido
por Roberto Marinho, em 1937. Lá publicou uma matéria sobre a morte do músico
Noel Rosa que, de tão bem escrita, foi reproduzida nos anais da ABL. Bom de
papo, circulava pela boêmia carioca e fez amizade com Carmem Miranda e Ary Barroso.
Sem dinheiro e vendo que o irmão precisava ser operado do coração com urgência,
o jornalista compôs Meu jardim e se inscreveu num concurso. Em seguida,
explicou o caso ao amigo Villa-Lobos, membro da comissão julgadora. Resultado:
arrebatou o prêmio, superando até o clássico Aquarela do Brasil. A marmelada
custou 20 anos sem falar com Ary Barroso. Só pararam de trocar farpas quando
Nasser contou a verdade ao compositor. Barroso o abraçou aos prantos: tanto a
letra como a música eram uma porcaria."
Saiu do jornal O Globo em
1943, insatisfeito por não poder realizar ou assinar reportagens importantes.
Foi trabalhar na revista "O Cruzeiro" que se tornava, então, a
revista brasileira mais popular dos anos 1940 e 1950.
Ganhou prestígio internacional
ao sobrevoar a aldeia de uma desconhecida tribo xavante. O avião foi atacado
com flechas e Nasser conseguiu transmitir para o texto todo o pânico que
passou. A reportagem foi reproduzida em 44 países.
As reportagens que fez em
parceria com o fotógrafo Jean Manzon de 1943 a 1951 foram fundamentais para o
sucesso de vendas da revista cuja tiragem atingiu níveis inesperados para a
época. David Nasser e Jean Manzon tornaram-se então a mais famosa dupla de
repórter-fotógrafo do Brasil.
Ganhou notoriedade por
realizar vários trabalhos conhecidos como "grande reportagem", forma
de reportagem que misturava de pesquisa de campo, opinião do jornalista,
pedaços de entrevistas e muitas fotografias de alta qualidade técnica. Ocorria
assim uma valorização do repórter que conhecia as pessoas e os locas de onde
vinha a notícia como a principal figura da redação, em detrimento dos
editorialistas e articulistas. A "grande reportagem" tornou-se
bastante popular no Brasil dos anos 40 quando foi usada pelos jornais para
driblar a censura da ditadura de Getúlio Vargas.
Barreto Pinto, foto: DR |
As versões de David Nasser
sobre pequenos e grandes fatos nem sempre refletiam a realidade. Aumentavam e
criavam fatos apenas para aumentar a venda de "O Cruzeiro". Mas
quando a grana ficou curta, precisou vender sua fiel máquina de escrever.
Arrependido, lançou-se na epopéia de procurar por ela. Entrevistou mais de 60
pessoas até chegar à velha companheira, que estava no Ceará. "Essa foi a
maior reportagem da minha vida", disse Nasser, aliviado.
A mais conhecida das
reportagens da dupla Nasser-Manzon, Barreto Pinto sem Máscara, de 1946, mostra
o deputado e amigo do ex-ditador Getúlio Vargas trajando fraque e uma cueca
samba-canção (o deputado federal Barreto Pinto foi entrevistado e deixou-se
fotografar em seu gabinete e numa banheira, vestido de fraque e cartola, mas
sem as calças, de cuecas samba-canção). A ousadia escandalizou o país. Barreto
Pinto acusou os jornalistas de o terem enganado, dizendo que só publicariam as
fotos da cintura para cima - o que não evitou que ele tivesse o mandato
cassado.
Em 1944 viajou para Pedro
Leopoldo com o intuito de entrevistar Chico Xavier. À época, a família de
Humberto de Campos movia uma ação contra Chico Xavier pelo fato deste publicar
obras psicografadas como sendo de autoria do falecido escritor. Como não
conseguia ser atendido por Chico Xavier, fingiu ser estrangeiro, o que também
serviria para testar se de fato o médium se comunicava com espíritos. Conseguiu
fazer uma reportagem não muito simpática com o extremamente retraído medium
Chico Xavier, a qual foi publicada em "O Cruzeiro.
Histórias de veracidades
discutíveis, o fato é que a opinião de David Nasser é um exemplo importante até
nos dias de atuais.
Em 1945, a dupla David Nasser
e Jean Manzon publicou em "O Cruzeiro" uma matéria ilustrada na qual
pretendiam ensinar aos brasileiros a distinguir um japonês de um chinês. David
Nasser escreveu, entre outras coisas, que o japonês podia ser distinguido pelo
"aspecto repulsivo, míope, insignificante
Outra reportagem nada ortodoxa
é o relato "exclusivo" sobre a estadia no Brasil de madame Chiang
Kai-shek, mulher do líder anticomunista da China. A matéria descreve em
detalhes um encontro com a personagem, arredia à imprensa, e exibe uma foto
dela ao longe. Anos depois, em entrevista a outro jornalista brasileiro, madame
desmentiu qualquer contato com Manzon e Nasser. Até mesmo a fotografia foi
falsificada, quem aparecia em seu lugar, desconfia-se, era o próprio Nasser, de
quimono.
David Nasser e o fotógrafo
Jean Manzon forjaram até uma reportagem sobre a morte do próprio Jean Manzon. A
brincadeira de mau gosto ajudou bastante as vendas de "O Cruzeiro".
Na reportagem "Nós
Voltaremos!", narra um mirabolante plano para derrubar o presidente Dutra
e restabelecer a ditadura de Vargas. Pasme: o ponto de partida para a matéria
era um manuscrito encontrado dentro de uma garrafa na Praia de Copacabana por
um desconhecido. Contrapondo depoimentos e analisando cada detalhe
inverossímil, mostra como Nasser inventava fontes de informação, descrevia
lugares e situações em que nunca estivera, e por aí afora.
Nasser foi imbatível nesse
tipo de malandragem, mas não era o único. Na imprensa daquela época, o conceito
de ética revelava-se bastante elástico. Ofensas pessoais e distorção dos fatos
faziam parte do arsenal aceito para uso jornalístico. O próprio Assis
Chateaubriand, dono de O Cruzeiro, era um polemista sanguinário. Fez de Nasser
o seu preferido justamente por apreciar seu jeito "amoral". Com o
tempo, porém, o repórter foi alargando ainda mais as fronteiras do que era
permitido.
Nasser foi relações-públicas
do empreiteiro André Cateyson, para quem teria intermediado favores junto a
Juscelino Kubitschek, então governador de Minas Gerais. Numa época de crise na
produção de ferro, conseguiu "diversas vezes", segundo uma
testemunha, que JK liberasse minério da estatal Belgo-Mineira para as obras do
empreiteiro. Nos arquivos do jornalista, foi encontrando comprovantes de que o
construtor bancou, em agradecimento, uma reforma num de seus imóveis. Daí para
a frente, tomou gosto pela atividade de lobista e pela intriga política, o que
lhe permitiu usar seus artigos como moeda de troca em negociatas, graças às
quais ganhou até fazendas de presente.
Em 1963, David Nasser foi
agredido pelo então deputado federal Leonel Brizola no Aeroporto do Galeão. O
que motivou a agressão foi um artigo escrito por Nasser na revista "O
Cruzeiro" com pesadas ofensas ao ex-governador gaúcho e fluminense.
Suas melhores conexões eram
com a direita. Ele foi ativo conspirador do golpe militar de 1964, por exemplo
apoiou a ditadura militar no Brasil (1964-1985) e teve amigos influentes nos
seus diversos governos.
Deixou a revista "O
Cruzeiro" em 1975, quando esta já estava em decadência. Dizia que sofria
pressões para seguir pautas dadas pela direção da revista. Seu pedido de
demissão foi notícia de repercussão nacional. Escreveu uma carta aberta
intitulada "Por que deixei o velho barco" na qual atacava João
Calmon, o diretor dos Diários Associados.
Em fevereiro de 1976 foi
trabalhar na revista Manchete, que tinha o mesmo estilo da "O
Cruzeiro", seguindo um convite de Arnaldo Niskier. Lá continuou a escrever
artigos atacando João Calmon, seu antigo chefe. Recorria aos amigos influentes
no governo da Ditadura Militar pedindo para acelerar os processos judiciários
civis que abriu contra seus antigos empregadores.
Morou no bairro da Aldeia
Campista no Rio de Janeiro. Muito rico, morreu em 10 de dezembro de 1980 -
doente de diabetes e câncer no pâncreas.
Mas a menina de seus olhos, no final da vida, foi mesmo a chamada Scuderie Le Cocq – o Esquadrão da Morte formado por policiais civis cariocas que eliminava bandidos nos anos 60 e 70. Mais do que defensor inflamado, trouxe os "jagunços", como dizia, para dentro de casa. Gostava de passear de carro com essa corja e apontar criminosos que gostaria de ver "apagados". Ele até se oferecia para tomar parte de batidas – o que nunca lhe foi permitido. Quando Nasser morreu, em 1980, aos 63 anos, a bandeira do grupo cobriu seu caixão.
Mas a menina de seus olhos, no final da vida, foi mesmo a chamada Scuderie Le Cocq – o Esquadrão da Morte formado por policiais civis cariocas que eliminava bandidos nos anos 60 e 70. Mais do que defensor inflamado, trouxe os "jagunços", como dizia, para dentro de casa. Gostava de passear de carro com essa corja e apontar criminosos que gostaria de ver "apagados". Ele até se oferecia para tomar parte de batidas – o que nunca lhe foi permitido. Quando Nasser morreu, em 1980, aos 63 anos, a bandeira do grupo cobriu seu caixão.
Título e Texto: Plínio Sgarbi
Publicado originariamente no
“Recanto das Letras”, em 09 de setembro de 2009
Edição: JP
Curiosidades sobre a revista O Cruzeiro:
• A primeira
edição de Cruzeiro (sem o artigo) é de 10 de novembro de 1928.
• A primeira
personalidade a aparecer em uma capa foi o Rei Alberto da Bélgica, no número 2,
e a primeira capa utilizando uma foto mostrava Santos Dumont (número
5).
•
Ininterruptamente, a revista foi editada de 1943 a 1975.
• Grandes
nomes fizeram história em O Cruzeiro. Dentre eles, Millôr Fernandes,
Péricles de Andrade Maranhão (criador de O amigo da onça) e Rachel de
Queiroz.
• Geralmente
as capas traziam modelos, atrizes e mulheres bonitas. Eram raras as capas
políticas. Getúlio Vargas, JK, João Goulart e Jânio Quadros estão entre essas
raridades.
• A revista
tem recordes ainda não quebrados como edições com mais de 750 mil exemplares
(até hoje, proporcionalmente, a maior) e sua longevidade, 47 anos (só agora, em
2003, Veja completou 35 anos).
• A última
edição de O Cruzeiro é de julho de 1975, com Pelé na capa, então
jogador do Cosmos, vestido de Tio Sam
Fonte: Memória Viva
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