O escritor Umberto Eco
completou 80 anos no último dia 5, e está de volta às manchetes literárias com
seu novo romance O Cemitério de Praga, livro que acabo de ler (e
recomendo). Trata-se de uma história envolvente, cujo personagem principal, o
único importante que é criado pelo autor, não passa de um pulha, um canalha que
aceita qualquer coisa em troca de dinheiro. Sua vida é uma série de farsas e
crimes, a cada momento atendendo a um cliente de lado diferente, algumas vezes
simultaneamente.
Mas eis o que eu gostaria de destacar do livro: o alerta de como é perigoso
selecionar uma “raça” como bode expiatório para todos os males do mundo é
válido e sempre atual. Os homens parecem inclinados a crer em teorias
conspiratórias que simplificam um mundo complexo e jogam a responsabilidade de
nossos problemas para ombros alheios. Se tais ombros forem de um povo
minoritário e facilmente identificável, então o trabalho é mais fácil ainda.
O personagem principal, Simone Simonini, escreve em seu diário: “Sempre conheci pessoas que temiam o complô de algum inimigo oculto – os judeus para vovô, os maçons para os jesuítas, os jesuítas para meu pai garibaldino, os carbonários para os reis de meia Europa, o rei fomentado pelos padres para meus colegas mazzinianos, os Iluminados da Baviera para as polícias de meio mundo – e, pronto, quem sabe quanta gente existe por aí que pensa estar ameaçada por uma conspiração... Aí está uma forma a preencher à vontade, a cada um o seu complô”.
O personagem principal, Simone Simonini, escreve em seu diário: “Sempre conheci pessoas que temiam o complô de algum inimigo oculto – os judeus para vovô, os maçons para os jesuítas, os jesuítas para meu pai garibaldino, os carbonários para os reis de meia Europa, o rei fomentado pelos padres para meus colegas mazzinianos, os Iluminados da Baviera para as polícias de meio mundo – e, pronto, quem sabe quanta gente existe por aí que pensa estar ameaçada por uma conspiração... Aí está uma forma a preencher à vontade, a cada um o seu complô”.
Por trás do encanto pelas teorias conspiratórias,
jaz o ressentimento: “A que aspira cada um, tanto quanto mais desventurado for
e pouco amado pela sorte? Ao dinheiro e, conquistado esse sem fadiga, ao poder
(que volúpia em comandar um semelhante e em humilhá-lo!) e à vingança por todos
os agravos sofridos (e todos sofreram na vida ao menos um agravo, por menor que
tenha sido). [...] Afinal, pergunta-se cada um, por que fui desfavorecido pela
sorte (ou ao menos não tão favorecido quanto gostaria), por que me foram
negados benefícios concedidos a outros menos merecedores do que eu? Como
ninguém pensa que suas desventuras possam ser atribuídas à sua mediocridade,
eis que se deverá identificar um culpado”.
Logo, muitos desejam encontrar este grupo, esta
classe, esta raça responsável por seus problemas, suas misérias. O trabalho do
criador de complôs fica então bastante facilitado, pois ele encontra um público
ávido por suas invenções e mentiras. “Convém que as revelações sejam
extraordinárias, perturbadoras, romanescas. Somente assim tornam-se críveis e
suscitam indignação”. Além disso, “você jamais deve criar um perigo de mil
faces, o perigo deve ter uma só, senão as pessoas se distraem”. Os judeus, povo
durante muito tempo sem Pátria e, portanto, minoritário, relativamente fácil de
ser identificado, e com muitos casos de sucesso material (até porque a Igreja
sempre os ajudou, condenando a prática da usura entre seus seguidores), eram um
alvo evidente para as teorias conspiratórias.
Como o russo Rachkovsky explica
no livro: “Para ser reconhecível e temível, o inimigo deve estar em casa ou na
soleira de casa. Eis por que os judeus. Eles nos foram dados pela Divina
Providência, então vamos usá-los, meu Deus, e rezemos para que haja sempre um
judeu a temer e a odiar. É necessário um inimigo para dar ao povo uma
esperança. Alguém já disse que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas:
quem não tem princípios morais costuma se enrolar em uma bandeira, e os
bastardos sempre se reportam à pureza da sua raça. A identidade nacional é o
último recurso dos deserdados. Muito bem, o senso de identidade se baseia no
ódio, no ódio por quem não é idêntico. É preciso cultivar o ódio como uma
paixão civil. O inimigo é o amigo dos povos. É sempre necessário ter alguém
para odiar, para sentir-se justificado na própria miséria. O ódio é a
verdadeira paixão primordial”.
Foi desta forma que nasceu Protocolos dos Sábios de Sião, um conjunto de textos
mentirosos que imputavam aos judeus um complô para dominar o mundo. Ele fora
forjado pela polícia secreta do Czar Nicolau II, e ganhou inúmeras traduções
pelo mundo todo, ajudando a disseminar o antissemitismo. Em 1921, o London
Times descobriu as relações com o livro de Joly, publicado muitos anos
antes, e denunciou os protocolos como uma falsificação. Mas o encanto pelas
teorias conspiratórias falou mais alto, e o livro foi publicado várias vezes
como autêntico depois disso. Hitler, em Minha Luta, chega a
escrever que os protocolos são verdadeiros, e a melhor prova é que os judeus
negam sua veracidade. Para o nazista, quando todos tiverem conhecimento dos
incríveis planos judaicos, o mundo estará perto da “solução final”, ou seja, o
extermínio desta “raça”.
O horror do Holocausto, resultado desta
campanha antissemita intensiva ao longo de décadas, ainda está fresco na
memória de muitos. Mas o risco é sempre real, especialmente em tempos de
crises, pois os homens são suscetíveis a teorias conspiratórias mirabolantes, e
os judeus sempre serão um alvo fácil. Nada mais reconfortante para os medíocres
do que crer que seus infortúnios são obra de uma cúpula pequena reunida em
locais secretos para construir complôs e dominar a humanidade. É tudo culpa
“deles”. E assim os fracassados alimentam o ódio que aquece suas almas.
Destaques: Fernando Bihari
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