Construímos, no pós-guerra, no
Ocidente, o melhor mundo que a Humanidade jamais conheceu. É esse mundo que
está agora a mudar por caminhos de imenso perigo, caminhos que nunca
percorremos
Uma das coisas interessantes
na série Downton Abbey, que está quase a regressar aos nossos ecrãs, é a forma
como ela retrata o fim de um mundo sem que aqueles que nele vivem se apercebam
bem de como tudo está a mudar. De resto, é quase sempre assim que acontece:
quando o mundo muda, é por regra depois de isso já ter acontecido que nos damos
conta.
Dei-me a pensar nisto quando
recapitulava algumas das notícias desta semana. Quando cruzava, por exemplo, o
escasso conteúdo programático dos debates entre António Costa e António José Seguro com alguns dos argumentos de Francisco Assis em defesa do novo governo de Hollande. O
eurodeputado do PS defende que o presidente francês teve de renunciar
“parcialmente à componente redistributiva do seu programa” para reforçar a
competitividade industrial e reduzir o défice. Mais: acrescentou que isso
representou “a insubordinação perante uma dogmática esquerdizante arcaica”,
tendo Hollande sido corajoso por seguir um caminho que lhe permite
salvarguardar os aspectos essenciais do Estado-providência.
Francisco Assis pode escrever
coisas assim porque não está a lutar pela liderança do PS. Se estivesse, teria
de tentar mostrar, como Costa e Seguro estão a tentar mostrar, que era “muito
mais de esquerda”. Mas não é isso que me interessa agora. O que me interessa é
notar que, quando governa, quando tem de lidar com a realidade, a esquerda
socialista, mesmo a francesa, está condenada a abdicar da sua pulsão
redistributiva para tratar de coisas menos nobres como o défice. Sabemos porque
isso acontece: acabou o dinheiro para redistribuir. Não meditámos ainda o
suficiente sobre o que isso significa: uma esquerda que já não redistribui
serve para quê? O que é que acontece aos nossos sistemas políticos quando deixa
de existir uma das mais velhas clivagens esquerda-direita do último século e
meio? Para onde vão os descontentes?
Uma coisa estamos a ver por
toda a Europa: a social-democracia perde terreno e quem ganha são as margens do
sistema político, populistas de diferentes matizes, uns mais extremistas,
outros nem isso. É uma evolução que está a tornar os países mais difíceis de
governar, que dificulta a formação de coligações de governo realistas e
estáveis. Mesmo sistemas políticos com séculos de provas dadas, como o
britânico, podem passar por dificuldades. No caso do Reino Unido basta olhar
para o dia seguinte do referendo escocês para perceber que foi
aberta uma caixa de Pandora que, agora, ninguém sabe como fechar. Aquilo que
antes era um adquirido – era fácil formar maiorias em Westminster, era fácil
votar por propostas alternativas a quem estivesse em Downing Street – pode tornar-se
bem mais difícil. Há quem fale mesmo de uma crise constitucional.
Esse referendo e as suas
motivações também são um sinal de tempos novos. E não, não vou falar da
componente quase tribal que tem emergido neste movimento nacionalista, assim
como noutros de várias partes da Europa. Falo, por um lado, de um egoísmo
populista: o “sim” faz campanha dizendo que, com os recursos do petróleo do mar
do Norte, a Escócia vai poder pagar o actual estado social e muito mais,
fintando as realidades da economia ao apropriar-se de um recurso natural que,
mesmo sendo escocês, é finito. E falo também da percepção de que, em muitos
países, o cimento da identidade nacional se vai esboroando em nome ora do
politicamente correcto que faz de toda a história passada uma espécie de
“pecado” (como o “pecado” dos buxos das nossas colónias na Praça do Império),
ora de micro-identidades sem referências comuns. Porque é que a Escócia, por
exemplo, há-de deixar de se orgulhar daquilo que tem em comum com o resto do Reino Unido – o país do iluminismo liberal, o país
que viu nascer e florescer a revolução industrial, o país que acabou com o
tráfico internacional de escravos, o país que fez frente a Hitler, para citar
apenas algumas referências comuns em que, para mais, houve grandes heróis
escoceses – para se centrar apenas nos feitos de Braveheart?
A dissolução de muitas
referências políticas que foram centrais naquilo que é hoje a Europa, a
dissolução dos antigos equilíbrios e referências dos nossos sistemas
constitucionais, a substituição disso tudo por movimentos centrífugos que se
alimentam do medo e do ressentimento, caminha a par com a paralisia dos nossos
países, do nosso mundo, face a quem o ameaça. Na Ucrânia ou na Síria. Num
subúrbio de Paris ou em Birmingham.
A pequena entrevista que o
Expresso fez a um jihadista português – que gosta de “treinar e matar” na Síria
– mostra bem a dimensão dos desafios que enfrentamos: por cada radical que
conseguiu juntar-se ao Estado Islâmico, há muitos e muitos milhares de radicais
que os olham com admiração, que gostariam de os imitar e que vivem na porta ao
lado da nossa. Pode ser – é pouco provável – que se derrote o EI com ataques
aéreos e um enxame de drones, mas isso não fará mudar nada de essencial nos
nossos bairros periféricos. Para além de que, se as coisas ficarem piores, se
for mesmo necessário recorrer à força militar, restará saber onde está a vontade? E os voluntários? Os meios? O dinheiro?
Construímos, no pós-guerra, no
Ocidente, o melhor mundo que a Humanidade jamais conheceu. É esse mundo que
está agora a mudar por caminhos de imenso perigo, caminhos que nunca
percorremos. A crise da social-democracia não é passageira. O equilíbrio dos
diferentes regimes constitucionais não é eterno. O financiamento do Estado
providência está a acabar. Os nacionalismos não são apenas uma manifestação do
direito à autodeterminação. O desemprego não é uma realidade passageira de uma
crise passageira. A dívida também não. A matriz comum, cultural e
civilizacional, das nossas sociedades é cada vez menos comum. Quase desistimos
das Forças Armadas mas ainda não chegou, nem chegará, o idealizado mundo
kantiano da paz eterna. Nunca tanta política foi decidida em tribunais, por
juízes e não por eleitores. E podia continuar a lista.
Houve um cimento, um propósito
partilhado, que parece ter desaparecido das nossas sociedades. A acrimónia no
debate público é apenas um pequeno sinal dessa realidade. O entricheiramento
das classes, grupos profissionais, empresas com mercados cativos, é outro sinal
de pulverização de egoísmos que tomou o lugar de uma esperança comum. Vivemos
também um tempo de desilusões e passa-culpas.
Todos sabemos que aquilo que é
hoje pode não ser amanhã. Que mesmo o que parece sólido pode cair de um momento
para o outro, sobretudo quando se está em estado de negação. Vimos em Portugal
como isso acabou de acontecer a um grande banco, e ainda estamos longe de
perceber o que aconteceu ou de antever todas as consequências da derrocada. Mas
há avisos no ar, e ainda esta semana lemos um na grande reportagem que o Financial Times dedicou ao
BES e à família Espírito Santo: “A história dos Espírito Santo é efectivamente
a história de Portugal ele mesmo: muita dívida, demasiada dívida, mas continuaram
a consumir”.
Mas não desesperemos. Em
sociedades abertas e democráticas há sempre soluções. Tal como havia, houve,
soluções no mundo de Downton Abbey. Elas podem é ter de passar por desafiar
certas utopias transnacionais, por contrariar muitas expectativas e por alterar
alguns hábitos.
Para que o nosso mundo, o tal
que é, repito, o melhor que a Humanidade jamais construiu, não acabe, tem de
mudar. O pior será continuar em estado de negação.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
13-09-2014
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