João Miguel Tavares
A diabolização de Passos Coelho é o
verdadeiro cimento que sustenta o governo.
Em 2016 não tivemos um
governo, mas um regoverno: o programa de António Costa e dos partidos à sua
esquerda limitou-se a repor salários, horas de trabalho, feriados. Em 2017,
pelo que se pôde ver no debate sobre o orçamento, também não vamos ter um
governo, mas um contragoverno: o programa de António Costa e dos partidos
à sua esquerda não tem, mais uma vez, nenhuma estratégia para mostrar,
limitando-se a vincar as diferenças em relação ao que seria o programa de um
alegado governo de direita em Portugal. “Lembrem-se o que sofreram às mãos do
PSD e do CDS”, disse Carlos César no Parlamento, naquilo que me pareceu um
resumo perfeito do que pudemos escutar nos últimos dias. A tese da esquerda é
esta: a grande força do Orçamento Seja o que Deus Quiser 2017 é ter impedido o
Orçamento Seja o que Passos Quiser 2016.
Pedro Passos Coelho foi muito
apressado a anunciar a vinda do diabo, mas para a esquerda o diabo chegou há
muito – e é ele. Finda a grande vaga das reposições, a diabolização de Passos
Coelho é o verdadeiro cimento que sustenta o governo. O Bloco de Esquerda
admite que este orçamento tem limitações… mas se fosse um orçamento de direita
seria bastante pior. O PCP admite que o orçamento fica muito aquém dos seus
desejos… mas se fosse o de Passos Coelho seria o terramoto de 1755. Ora, quando
se tem de engolir sapos tantas vezes, deixa de ser sacrifício para passar a ser
gastronomia. O Bloco e o PCP já não estão a engolir sapos – eles estão a
degustar perninhas de rã. Não vale a pena continuarem a fazer caretas. Estão a
comer de livre vontade. E a gostar.
Se há mérito que António Costa
tem é precisamente ter conseguido esse extraordinário empenho na protecção do
governo por parte da esquerda, que é muito maior do que aquilo que alguma vez
imaginei possível. Foi por isso que, durante a tarde de ontem, Carlos César não
perdeu dois minutos a defender o orçamento de Estado – passou o tempo todo a
atacar PSD e CDS. “Ainda não se habituaram à condição de oposição”, disse ele.
É verdade. Mas ainda mais espantoso é o PS não se ter habituado à condição de
governo.
É certo que António Costa
iniciou o seu discurso em pose de estadista, recordando os “seis pilares do
programa nacional de reformas”, aos quais chamou uma “estratégia de médio e
longo prazo”, e que inclui medidas tão originais quanto a educação para
adultos, a “indústria 4.0” (uma nova versão do plano tecnológico) e o Simplex
+. Desconfio que José Sócrates terá pensado para com os seus botões: “Eu até
posso não ter escrito os meus livros, mas pelo menos escrevi o programa de
reformas de António Costa.” Mas depois de ter perdido algum tempo a relembrar medidas
absolutamente fundamentais para a salvação do país, tais como a inauguração de
lojas do cidadão e o desenvolvimento do regadio, a pose de estadista
rapidamente ficou para trás, e o primeiro-ministro animou enfim as hostes ao
soltar o grito de guerra do défice: “Nós conseguimos o que vocês falharam após
quatro anos de governo!”
A partir desse momento, Costa
continuou a martelar impiedosamente a oposição, como se ainda fosse ela que
estivesse a governar. Poder-se-á argumentar que tudo isto é muito poucochinho.
E, no entanto, é tudo aquilo que António Costa tem e é tudo aquilo que os seus
apoiantes querem ouvir. Passos Coelho é o belzebu de estimação da esquerda
portuguesa, e a solidez do seu pacto deriva disso. Não é preciso amor quando há
tanto ódio para dar.
Título e Texto: João Miguel Tavares, Público,
5-11-2016
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