Indignação é fraqueza. É silenciar o pensamento racional e permitir o triunfo da emoção. Apesar do que você tem ouvido e visto ultimamente, não é uma virtude
Rodrigo Constantino
Imagina uma bomba explodir e atingir seu corpo inteiro, destruindo praticamente seus dois olhos em cheio. Agora imagina a força que é necessária para enfrentar os desafios à frente, na esperança remota de que ao menos um dos olhos volte a funcionar, e fazer isso sem cair no desespero, na vitimização ou no ressentimento. Parece quase impossível, certo? Mas foi exatamente o que fez Dan Crenshaw após ser atingido por uma dessas bombas caseiras no Afeganistão, como um SEAL das Forças Armadas Americanas. Ele conta sua história no livro Fortitude: American Resilience in the Era of Outrage, uma leitura imperdível em tempos de “mi-mi-mi” excessivo.
Crenshaw hoje é um
congressista republicano pelo Estado do Texas, e costuma adotar na política uma
postura firme nas convicções, mas flexível na abordagem. Seu livro é uma
tentativa de reverter essa “política da raiva” que vem dominando a era atual,
com um tribalismo que transforma o adversário em inimigo mortal a ser
eliminado. Ele abre o livro contando sobre uma manifestação que viu em frente
ao Congresso, que parecia totalmente sem propósito. A ideia era apenas
demonstrar indignação, sem uma pauta específica, sem nenhuma proposta concreta
e construtiva.
“É importante ficar indignado”, dizia o título de um artigo de opinião de 2019, na esperança de que seus leitores não voltassem à complacência de suas alegres rotinas diárias. “Fique indignado e continue indignado”, exclamava outra manchete, igualmente desesperada por uma irritação contínua. “Nunca perca a sensação de indignação”, tuitou o senador Bernie Sanders, sabendo que a manipulação política mais eficaz é alcançada pela emoção crua. É um pensamento peculiar, diz o autor, essa noção de que, se você estivesse suficientemente informado, ciente e acordado (woke), teria o dever de exibir um estado de fúria intenso.
No entanto, uma pessoa normal
poderia ler essas manchetes com algum ceticismo: não vivemos na época mais
próspera e na nação mais poderosa do mundo, com uma qualidade de vida que
causaria inveja na imensa maioria? Mas, para os revoltados, isso seria prova
apenas de que você não está prestando atenção suficiente. Quando seus valores
são medidos não pelo que você efetivamente conquistou ou quem você realmente é,
mas por quão raivoso você demonstra ser em suas falas, dificilmente você será
uma pessoa confiante em si mesmo.
Indignação é fraqueza, para
Crenshaw. É silenciar o pensamento racional e permitir o triunfo da emoção.
Apesar do que você tem ouvido e visto ultimamente, não é uma virtude. Não é
algo para ser celebrado, nem elogiado, nem aspirado. É uma emoção profundamente
humana — às vezes até compreensível — mas raramente é produtiva, virtuosa ou
útil.
É um livro, então, sobre a
cultura da indignação e a tendência de assumir reflexivamente as piores
intenções ao reagir a notícias ou comentários ou discursos políticos, num ódio
emocionalmente direcionado ao “outro”, não importa muito quem seja. A cultura
da indignação é a transformação da emoção em arma e a elevação da emoção acima
da razão. É o novo normal, em que a percepção da retidão moral aumenta na
proporção do nível de indignação. Quanto mais indignado alguém fica, mais
autêntico parece ser. E, quanto mais “autêntico”, maior será sua posição moral.
Razão, raciocínio e evidências que se danem.
Em vez de buscarem
compreensão, as pessoas estão cada vez mais interpretando as ações dos outros
da maneira menos generosa possível e assumindo as piores intenções. O
tribalismo alimentado pelas redes sociais somado à ideia de “microagressões”
produz uma cultura de “cancelamento” que resulta em rituais de humilhação em
público. Além disso, com a adição do anonimato inerente às redes sociais,
acabamos com os ingredientes para uma cultura tóxica de política de manada. É
justamente contra isso o livro de Crenshaw.
Se Jordan Peterson chegou à
importância dos arquétipos de heróis na mitologia para as culturas por meio de
seus estudos clínicos como psicólogo, Crenshaw chegou ao mesmo destino por
meios mais práticos. Uma visão clássica do arquétipo do herói seria uma pessoa
calma, controlada e segura de si. Uma pessoa criada com o mantra de “paus e
pedras” ou a grande frase de Rudyard Kipling: “Se consegues manter a calma
quando à tua volta todos a perdem e te culpam por isso”.
Quanto tempo nossa sociedade
pode durar quando estamos uns avançando na garganta dos outros?
Parece que esse arquétipo
perdeu posição diante de sua própria antítese: indignação “correta”, reação
emocional e arrogância moral. O novo herói é aquele que “fala a verdade ao
poder” (um clichê batido com uma definição indescritível) e sinaliza sua
opressão em voz alta, pronto para “corajosamente” apontar como os outros
cometeram injustiças.
Para Crenshaw, a patologia
cresceu fora de controle, muitas vezes à custa de lógica, decência e virtude.
Não estamos agindo da maneira que devemos. Zombamos da virtude, sem considerar
como seu abandono acelera nossa decadência moral. As consequências dessa
deterioração são muitas, mas no final das contas é uma questão de
sustentabilidade. Quanto tempo nossa sociedade pode durar quando estamos uns
avançando na garganta dos outros? Não queremos saber a resposta a essa
pergunta. Queremos saber como consertar o problema.
O autor, treinado na
disciplina dos SEALs, entende que a resposta está dentro de cada um de nós. Se
você está perdendo a calma e sendo levado pelos “gatilhos” lá fora, então você
está perdendo. Se você deixa a indignação te controlar, então lhe falta
autocontrole. São derrotas pessoais, não culpa de terceiros. E cada derrota
dessas nos molda como pessoa, sendo que no coletivo nos molda como povo.
O livro, portanto, é sobre a
importância de construir uma sociedade de indivíduos duros que podem pensar por
si mesmos, cuidar de si mesmos e reconhecer que uma cultura caracterizada por
coragem, disciplina e autossuficiência é uma cultura que sobrevive. Uma cultura
caracterizada por autopiedade, indulgência, indignação e ressentimento é uma
cultura que se desintegra. É realmente simples e é uma escolha verdadeiramente
existencial.
As gerações atuais precisam de
uma perspectiva melhor sobre sua situação, assim como precisam de propósitos
mais elevados. A mãe de Crenshaw sofreu por cinco anos com um câncer de mama
terminal, e isso lhe deu uma perspectiva bem diferente sobre “microagressões”
em sala de aula. Além disso, sua mãe nunca perdeu a esperança, o bom humor, a
resiliência, e isso transmitiu aos filhos a importância de não pôr em foco a
autocomiseração ou o ressentimento.
Quando uma bomba caseira
estourou seus olhos no Afeganistão, ele pensou na mãe, nos outros soldados que
passaram por coisas semelhantes ou piores, e encontrou forças para seguir
adiante, alimentando a esperança de que voltaria a enxergar com um dos olhos
afetados. “Pude experimentar a natureza de um verdadeiro herói, e o exemplo que
ela deu foi a coisa mais poderosa, fortalecedora e altruísta que já vi —
inclusive em combate”, revela. Esse aspecto de não abandonar o humor parece
fundamental para o autor, e novamente veio de sua mãe:
Susan Carol Crenshaw era
exatamente o oposto do que ela tinha todo o direito de ser. Em vez de afundar
na vitimização e no desespero, ela era uma otimista com um coração genuíno e um
senso de humor bobo. Ela disse ao meu pai antes de morrer: “Você traz qualquer
mulher vagabunda em volta dos meus meninos e eu vou assustá-los pra caralho”. O
humor negro é o melhor tipo de humor. Talvez tenha sido daí que eu aprendi
isso.
Crenshaw conta os detalhes de
como conseguiu salvar um dos olhos no livro, e não foi moleza. Após cirurgias
bem arriscadas, ele teve de ficar seis semanas inteiras virado de cabeça para
baixo, praticamente sem se mexer. Qualquer movimento brusco, qualquer virada,
poderia significar a destruição de sua retina para sempre. E isso enquanto o
restante de seu corpo estava bem danificado pelos estilhaços da bomba. Não
obstante, ele nunca perdeu a esperança, a resiliência ou mesmo a gratidão:
Essa é a minha história de
ser explodido. Não posso dizer que recomendo a experiência. No entanto, mesmo
enquanto estava acontecendo — mesmo no momento após a explosão —, eu tinha que
admitir: poderia ter sido pior. Eu ainda estava com minhas pernas. Eu estava
com meus braços. Eu tinha dez dedos das mãos e dez dos pés. Meu cérebro
funcionou, mesmo depois da concussão severa. Eu ainda estava vivo. […] Dessa
escuridão vem o realismo. Desse realismo vem a gratidão. Da gratidão vem a
perspectiva. Um senso de perspectiva saudável é um antídoto para a indignação.
É um antídoto para a autopiedade, o desespero e a fraqueza.
A sociedade moderna vive com
mais segurança, prosperidade, uma expectativa de vida maior, uma mortalidade
infantil bem menor, e nesse contexto vamos permitir que um pronome utilizado na
sala de aula ou no Twitter seja suficiente para nos deixar indignados? A
perspectiva pode ajudar a dar mais gratidão aos jovens. E no fundo se trata de
uma escolha individual: a escolha de não ser amargo, de adotar hábitos
melhores, já que são os hábitos que nos definem. Por meio deles formamos nosso
caráter.
Aí entra a importância dos
arquétipos heroicos, que servem como um norte, como um destino que colocamos
como objetivo. Pessoas de carne e osso podem servir a esse propósito, mas são
sempre falhas, imperfeitas. Idealizar alguém real é sempre um risco, portanto.
Crenshaw preferiu os tipos mais abstratos em sua vida, à exceção de sua mãe.
Ele dá exemplos de onde tira símbolos inspiradores:
As histórias de Jesus nos
ensinam amor e perdão ao nos encorajar a ser mais como ele. Rosa Parks nos
ensina coragem diante da opressão. As lições dos deuses na mitologia grega
frequentemente nos ensinam o que não devemos fazer, pois suas ações são punidas
de acordo. As histórias e mitos que constituem a compreensão coletiva de nossos
valores culturais são vitais para o nosso desenvolvimento.
E, claro, ele bebeu da fonte
de formação dos SEALs, uma força de combate de elite criada na disciplina, na
coragem, na perseverança, na liderança, na hierarquia, no senso de propósito
coletivo, na honra e no compromisso. Como congressista agora, Crenshaw tenta
levar esse aprendizado todo para a política, criando pontos, abrindo diálogos,
defendendo suas convicções com firmeza, mas também leveza. Ele carrega em si
uma perspectiva um tanto diferente da maioria, que se deixa indignar, ou pior,
que explora a raiva alheia com base em bobagens, em coisas insignificantes, que
somadas estão esgarçando de vez nosso tecido social.
Título e Texto: Rodrigo
Constantino, revista Oeste, nº 54, 2-4-2021
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