Crença pode ser de foro íntimo, subjetiva, mas o culto não: é justamente a comunhão dos crentes que compartilham da mesma fé. Não é uma simples 'aglomeração', como uma festinha
Rodrigo Constantino
Ninguém nega a gravidade da
pandemia, mas é preciso refletir sobre os excessos. Afinal, sabemos que em nome
do “interesse coletivo”, especialmente em situações de emergência, o Leviatã
estatal estende seus tentáculos sobre nossas liberdades e depois jamais recua.
Por isso todo estatizante adora uma guerra ou metáfora de guerra, que servem
para justificar esse planejamento central, controle social e visão totalitária
coletivista.
Essa emergência pandêmica já
dura mais de um ano, vale lembrar. E várias dessas medidas drásticas e
autoritárias, tomadas em caráter “temporário”, acabam se perpetuando. Podemos
combatê-las no âmbito de seus resultados, cobrando as tais comprovações
científicas, apontando para a hipocrisia de restringir igrejas com transportes
públicos lotados, mas o foco aqui nem será o consequencialismo. É um caso mais
principiológico mesmo. Ou a Constituição vale, ou não vale. E, quando ela é abandonada,
o que resta é o puro arbítrio.
Antonin Scalia, um dos maiores juízes da Suprema Corte norte-americana, defendia sempre a importância vital do rule of law, um Estado de Direito em que todos devem responder às mesmas regras. Scalia citava em seus discursos um trecho de O Homem Que Não Vendeu a Sua Alma, filme de Robert Bolt sobre Thomas More, em que o santo justifica o benefício legal até para o diabo. A passagem é memorável, pois More faz uma defesa incrível do império das leis dos homens, lembrando que não é Deus para julgar acima delas, e que atalhos ilegais para punir quem se sabe ser uma pessoa ruim põem em risco o próprio arcabouço que protege os inocentes:
Oh? E quando a última lei
caísse, e o Diabo se virasse para você — onde você se esconderia, Roper, as
leis estando todas abaixo? Este país está enraizado com leis de costa
a costa — as leis do homem, não as de Deus — e, se você as derrubar — e
você é o homem certo para isso —, você realmente acha que poderia ficar de pé
contra os ventos que soprariam então? Sim, eu daria ao Diabo o benefício da
lei, para minha própria segurança.
Pois bem: voltemos então ao
texto da nossa Carta Magna: “É inviolável a liberdade de consciência e de
crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida,
na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. O trecho é
bem claro: salvo em situação de estado de sítio, que precisa ser decretado pelo
presidente da República com anuência do Congresso, o Estado não tem o poder de impedir
a prática religiosa em seus locais, considerados sagrados pelos fiéis.
Um ministro do STF chegou a
falar que todos são livres para rezar em casa, ignorando não só a Constituição,
como o ponto de vista do crente. “Não há Cristianismo sem a vida comunitária”,
disse o ministro André Mendonça na sessão do Supremo que votou sobre o assunto.
Para quem acredita que a hóstia é o corpo de Cristo, não dá para substituí-la
por um pedaço de pão francês caseiro. A religião precisa de ritos, liturgias,
locais sagrados, e ninguém é obrigado a crer, mas tampouco é aceitável que o
Estado se intrometa em crenças alheias.
Os especialistas não levam em
conta todas as dimensões da crise
Estado laico é algo que
precisa cortar para ambos os lados. É um muro que separa Estado e fé, não
coloca um acima do outro. A César o que é de César, teria dito o próprio
Cristo. O Estado não terá uma religião oficial, obrigatória, mas também não vai
perseguir nenhuma religiosidade, querer se intrometer em seus rituais e
liturgias. E a crença pode ser de foro íntimo, subjetiva, pessoal, mas o culto
não: é justamente a comunhão dos crentes que compartilham daquela mesma fé. Não
é uma simples “aglomeração”, como uma festinha.
Deixando de lado o fato de que
nossa civilização ocidental é calcada em valores judaico-cristãos, e que o
Cristianismo é a religião mais atacada pelos “iluminados” seculares que cospem
no prato em que comem, resta apontar para o enorme risco de delegar ao Estado
um poder tão elástico e desmesurado, mesmo em tempos de pandemia. Quando se
abre a porteira para passar um boi, normalmente passa a boiada inteira.
Dennis Prager, um conhecido
conservador judeu norte-americano, escreveu um artigo lamentando a passividade
de seus compatriotas diante do abuso de poder do Estado na pandemia, usando
como exemplo a máscara. Ele mostra as incoerências das autoridades, as opiniões
erráticas dos especialistas, e a própria crença de que basta consultar os
especialistas para impor um modus vivendi “adequado” a todos.
Prager conclui: “As pessoas dizem que ‘seguem a ciência’. Elas raramente o
fazem. Elas seguem os cientistas que a mídia diz para elas seguirem”.
Hayek já alertava para o
perigo de obedecer a especialistas que sabem apenas uma pequena parcela do
todo, e mesmo em suas áreas encontram claros limites para o conhecimento. O que
hoje é “verdade absoluta” muitas vezes se mostra equivocado amanhã. O que
estamos vendo hoje é uma “tirania dos especialistas”, que não levam em conta
todas as dimensões da crise, ou que ignoram a necessidade da humildade no
processo da ciência.
Sim, a vida humana tem
gigantesco valor, mas nem esse valor é absoluto. Caso contrário, o Estado teria
de proibir os carros, já que milhares morrem todos os anos em acidentes de
trânsito. Há o aspecto econômico, há o aspecto legal, e há a questão das nossas
liberdades. Os “especialistas”, selecionados a dedo pelas autoridades, uma vez
que nem sequer há consenso nessas áreas, buscam monopolizar a fala em nome da
ciência ou da preocupação com a vida humana, e em seguida passam a ignorar os
demais pontos. Basta questionar suas decisões para ser rotulado de “genocida”.
Indivíduos possuem valores
distintos, tolerância diferente ao risco inerente de viver, prioridades
díspares, e não cabe ao Estado impor um tamanho de sapato único a todos. Tem
gente desesperada com os riscos da pandemia e cega para todo o restante. É
compreensível, ainda mais quando pensamos na cobertura abutre de parte da
mídia. Mas isso não dá a essa gente o direito de controlar a vida alheia nos
detalhes. Quem quer rezar em casa, ou acender vela para o Diabo, pode fazê-lo.
Mas quem quer participar de uma missa numa igreja para louvar Deus, com os
devidos cuidados sanitários, também deve ser livre para fazê-lo. Está na
Constituição. Ou isso, ou o Estado deixou de ser laico e passou a ser
antirreligioso e autoritário.
Título e Texto: Rodrigo
Constantino, revista Oeste, nº 55, 9-4-2021
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