sábado, 10 de abril de 2021

Estado laico, sim. Mas não antirreligioso

Crença pode ser de foro íntimo, subjetiva, mas o culto não: é justamente a comunhão dos crentes que compartilham da mesma fé. Não é uma simples 'aglomeração', como uma festinha

Rodrigo Constantino


Esta semana, um dos grandes debates que tomaram conta da nação foi o fechamento das igrejas para a realização de cultos e missas. A pandemia tem servido para todo tipo de abuso de autoridade, sempre com o respaldo de “especialistas”, mas não da Constituição. O lockdown, definição por governadores do que é ou não essencial — e, portanto, pode ou não abrir ou ser vendido no mercado —, vem impondo medidas controversas que atropelaram liberdades individuais em nome do interesse coletivo.

Ninguém nega a gravidade da pandemia, mas é preciso refletir sobre os excessos. Afinal, sabemos que em nome do “interesse coletivo”, especialmente em situações de emergência, o Leviatã estatal estende seus tentáculos sobre nossas liberdades e depois jamais recua. Por isso todo estatizante adora uma guerra ou metáfora de guerra, que servem para justificar esse planejamento central, controle social e visão totalitária coletivista.

Essa emergência pandêmica já dura mais de um ano, vale lembrar. E várias dessas medidas drásticas e autoritárias, tomadas em caráter “temporário”, acabam se perpetuando. Podemos combatê-las no âmbito de seus resultados, cobrando as tais comprovações científicas, apontando para a hipocrisia de restringir igrejas com transportes públicos lotados, mas o foco aqui nem será o consequencialismo. É um caso mais principiológico mesmo. Ou a Constituição vale, ou não vale. E, quando ela é abandonada, o que resta é o puro arbítrio.

Antonin Scalia, um dos maiores juízes da Suprema Corte norte-americana, defendia sempre a importância vital do rule of law, um Estado de Direito em que todos devem responder às mesmas regras. Scalia citava em seus discursos um trecho de O Homem Que Não Vendeu a Sua Alma, filme de Robert Bolt sobre Thomas More, em que o santo justifica o benefício legal até para o diabo. A passagem é memorável, pois More faz uma defesa incrível do império das leis dos homens, lembrando que não é Deus para julgar acima delas, e que atalhos ilegais para punir quem se sabe ser uma pessoa ruim põem em risco o próprio arcabouço que protege os inocentes:

Oh? E quando a última lei caísse, e o Diabo se virasse para você — onde você se esconderia, Roper, as leis estando todas abaixo? Este país está enraizado com leis de costa a costa — as leis do homem, não as de Deus — e, se você as derrubar — e você é o homem certo para isso —, você realmente acha que poderia ficar de pé contra os ventos que soprariam então? Sim, eu daria ao Diabo o benefício da lei, para minha própria segurança.

Pois bem: voltemos então ao texto da nossa Carta Magna: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. O trecho é bem claro: salvo em situação de estado de sítio, que precisa ser decretado pelo presidente da República com anuência do Congresso, o Estado não tem o poder de impedir a prática religiosa em seus locais, considerados sagrados pelos fiéis.

Um ministro do STF chegou a falar que todos são livres para rezar em casa, ignorando não só a Constituição, como o ponto de vista do crente. “Não há Cristianismo sem a vida comunitária”, disse o ministro André Mendonça na sessão do Supremo que votou sobre o assunto. Para quem acredita que a hóstia é o corpo de Cristo, não dá para substituí-la por um pedaço de pão francês caseiro. A religião precisa de ritos, liturgias, locais sagrados, e ninguém é obrigado a crer, mas tampouco é aceitável que o Estado se intrometa em crenças alheias.

Os especialistas não levam em conta todas as dimensões da crise

Estado laico é algo que precisa cortar para ambos os lados. É um muro que separa Estado e fé, não coloca um acima do outro. A César o que é de César, teria dito o próprio Cristo. O Estado não terá uma religião oficial, obrigatória, mas também não vai perseguir nenhuma religiosidade, querer se intrometer em seus rituais e liturgias. E a crença pode ser de foro íntimo, subjetiva, pessoal, mas o culto não: é justamente a comunhão dos crentes que compartilham daquela mesma fé. Não é uma simples “aglomeração”, como uma festinha.

Deixando de lado o fato de que nossa civilização ocidental é calcada em valores judaico-cristãos, e que o Cristianismo é a religião mais atacada pelos “iluminados” seculares que cospem no prato em que comem, resta apontar para o enorme risco de delegar ao Estado um poder tão elástico e desmesurado, mesmo em tempos de pandemia. Quando se abre a porteira para passar um boi, normalmente passa a boiada inteira.

Dennis Prager, um conhecido conservador judeu norte-americano, escreveu um artigo lamentando a passividade de seus compatriotas diante do abuso de poder do Estado na pandemia, usando como exemplo a máscara. Ele mostra as incoerências das autoridades, as opiniões erráticas dos especialistas, e a própria crença de que basta consultar os especialistas para impor um modus vivendi “adequado” a todos. Prager conclui: “As pessoas dizem que ‘seguem a ciência’. Elas raramente o fazem. Elas seguem os cientistas que a mídia diz para elas seguirem”.

Hayek já alertava para o perigo de obedecer a especialistas que sabem apenas uma pequena parcela do todo, e mesmo em suas áreas encontram claros limites para o conhecimento. O que hoje é “verdade absoluta” muitas vezes se mostra equivocado amanhã. O que estamos vendo hoje é uma “tirania dos especialistas”, que não levam em conta todas as dimensões da crise, ou que ignoram a necessidade da humildade no processo da ciência.

Sim, a vida humana tem gigantesco valor, mas nem esse valor é absoluto. Caso contrário, o Estado teria de proibir os carros, já que milhares morrem todos os anos em acidentes de trânsito. Há o aspecto econômico, há o aspecto legal, e há a questão das nossas liberdades. Os “especialistas”, selecionados a dedo pelas autoridades, uma vez que nem sequer há consenso nessas áreas, buscam monopolizar a fala em nome da ciência ou da preocupação com a vida humana, e em seguida passam a ignorar os demais pontos. Basta questionar suas decisões para ser rotulado de “genocida”.

Indivíduos possuem valores distintos, tolerância diferente ao risco inerente de viver, prioridades díspares, e não cabe ao Estado impor um tamanho de sapato único a todos. Tem gente desesperada com os riscos da pandemia e cega para todo o restante. É compreensível, ainda mais quando pensamos na cobertura abutre de parte da mídia. Mas isso não dá a essa gente o direito de controlar a vida alheia nos detalhes. Quem quer rezar em casa, ou acender vela para o Diabo, pode fazê-lo. Mas quem quer participar de uma missa numa igreja para louvar Deus, com os devidos cuidados sanitários, também deve ser livre para fazê-lo. Está na Constituição. Ou isso, ou o Estado deixou de ser laico e passou a ser antirreligioso e autoritário.

Título e Texto: Rodrigo Constantino, revista Oeste, nº 55, 9-4-2021

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