domingo, 20 de março de 2022

[As danações de Carina] Os olhos da ‘Primeira vez’ são imaturos

Carina Bratt

O PRIMEIRO BEIJO a gente não esquece. Assim como o primeiro sutiã, a primeira calcinha, o primeiro namorado, a primeira briga, o primeiro desencontro, o primeiro fora, o primeiro desengano. A vida nos dá essa opção fantástica pelo incerto, ou pelo primeiro. Encaro tudo como uma porta trancada que se abre para a vida, que se escancara pela primeira vez e a gente tem aquela sensação de que dali para a frente, a gente estará livre, leve, solta, desimpedida para ir em frente exatamente em busca do primeiro tudo. O primeiro tudo pode ser tudo na nossa existência, como também pode não ser nada.

‘O nada é tudo e o tudo é nada’, já dizia Marcos Rey em seu livro ‘O último mamífero do Martinelli’, aliás, foi o primeiro sugador de sangue que morreu exatamente por falta de sangue. Na minha primeira vez, pousou no meu sonho uma borboleta. Qual a sua cor? Como foi a primeira eu não me esqueci. Era amarela. Tinha uma beleza estonteante, inesquecível, inexplicável. Reluzia como ouro. Minha mãe uma vez me disse: “Carina a maior demonstração da grandeza e perseverança é ter inveja de si própria, fazendo de seu minuto à frente, um referencial, tentando se superar a cada novo dia que se avizinha”. Faz um tempo enorme que ela me disse isso e, desde essa primeira vez, até hoje, nunca me esqueci.

Numa dessas minhas noites de insônia, ouvi gritos. Foi a primeira vez. Geralmente quando me deito, difícil acordar. Pois bem. Pulei da cama, abri a janela. Nada! Corri na varanda. Lá embaixo, o silêncio fazia charme e não se mostrava em toda a sua totalidade. Devo ter sonhado. Possivelmente! Afinal de contas, foi a primeira vez que tal fato me ocorreu. Cheguei à conclusão que gridi nella via il silenzio si spacca in silenzi. Assim como vecchi mendicanti i’ angolo li avvicina. Dia seguinte, quando desci para ir à padaria, fiquei sabendo que alguém partiu desta para melhor, se suicidando. O suicídio é visto pelo fraco como uma válvula de escape quando tudo não parece ter mais opção. Sempre há uma saída, uma porta, uma janela, um desvão... no final do túnel pode aparecer, numa hora aflita, ser a luz incandescente que procuramos, ou no pior dos mundos, a lamparina de chama tênue. Igualmente o umbral para o buraco imensurável que nos levará para um lugar estranho, de onde não se tenha como voltar de regresso à nossa vida de agora.

Pela primeira vez que tentamos algo inédito, devemos ter, em mente, que a casa do mal está logo ali adiante, de portas abertas, arreganhadas à nossa espreita. No menor vacilo, no menor deslize, kikikikikiki, ela nos envolve em suas paredes, nos prende em suas teias, e, pela primeira vez, descobrimos que a cilada preparada se fez grandiosamente inevitável e vigorosa, irremovível e consumada. Jamais devemos retirar as flores mortas de um jardim esquecido ou bolinar na Esperança que dormita entre as sombras. Ainda que seixos venham a se partir, árvores a se fazerem ao chão, ou ideias a se moverem em sentido contrário às nossas preocupações. Tudo deve ficar em paz.

O primeiro beijo a gente não esquece. O meu primeiro trocar de salivas, o gosto dela na boca, foi maravilhoso. Naveguei como uma canoa por lugares insinuantes, me vi, de repente, num repente, presa a um assombrado mavioso e aprazente mar de águas calmas e acolhedoras. Tudo ao meu redor, se fez airoso, fagueiro... o mesmo se deu com o sutiã e a calcinha. Presente de meu papito. Ao usar as peças ganhas, me vi na pele de uma menina mulher, todavia, no corpo ardente de uma adulta sem futuro. Do primeiro namorado, pouco lembro. Apenas recordações que se foram com o passar do meu amadurecimento.

Na primeira briga eu andei tomando uns tapas. Aprendi que só devemos dar o troco, se tivermos a certeza da vitória. O primeiro desencontro ficou desencontrado. Eu fui por uma estrada, os meus desejos por outra via de mão destoante. O primeiro desengano doeu. Deixou marcas. Me desenganei das pessoas que me cercavam, que conviviam ao meu lado, ombro a ombro, no dia a dia. Apesar dos pesares, superei, desbastei da minha alma o que achava ser ruim. Venci a mim mesma e hoje sou forte, robusta, capaz. Encaro a primeira vez, não como o início de uma nova jornada, como um desafio insignificante que me levará exatamente onde quero e pretendo chegar. Em dias de agora, só me dou se me é dado, a RECIPROCIDADE.

Título e Texto: Carina Bratt. De Vila Velha, no Espírito Santo. 20-3-2022 

Anteriores: 
[As danações de Carina] Como me esquecer de você e desse dia?! 
Quando a ‘Saudade’ deixa de ser ‘Saudade’ e se transforma em poesia... 
Por todos os ‘Is’ que ficaram sem pingos 
Voyeurismo provocado 
Recado rápido. Tipo aquele rasteiro que finge entrar por uma porta giratória... 
Cá entre nós: o que isso tudo tem de importante?! 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-