Carina Bratt
Um pouco antes de ser internado (no hospital do Exército, meu velho se
fizera militar de carreira desde tenra idade), de onde só sairia dias depois
nos braços da morte, me pediu que levasse o opúsculo para que mais uma vez se
deleitasse com as poucas páginas de uma história que ele rotulara de
‘suavemente perfeita’. Papai desta feita não conseguiu sequer abrir o livro.
Quando deixou a UTI decidi tomar para mim o encargo de ser a guardiã dessa obra
prima.
Desde sempre, o tempo vem passando e, então, esse livro se tornou o meu
melhor amigo do peito. Nas minhas viagens com o Aparecido, entre os muitos
títulos que carrego na bagagem, com certeza está o que papai amava como se
fosse uma parte pulsante da sua vida. Ontem, como disse, logo no início das
minhas ‘Danações’ desse domingo, acabei de concluir mais uma vez a emocionante
história tão bem engendrada por Jack London.
É a terceira vez em que me atenho a esse escritor fenomenal e intrigante, nascido John Griffith Chaney, aos doze de janeiro de mil oitocentos e setenta e seis, em São Francisco, na Califórnia e chegado à sepultura em vista de ter se entregue aos desprazeres e desconfortos do álcool, em Gren Ellen, aos vinte e dois de novembro de mil novecentos e dezesseis, quando gozava o albor dos quarenta anos.
Mais de cem anos depois, seu livro (o preferido de meu pai e, após o seu passamento para o andar de cima, se tornado o meu eleito também), continua a obra inimitável encantando e penhorando almas e mentes apaixonadas por uma ficção simples e bucólica, todavia repleta de amor a magia. Falo, evidentemente, de ‘O Grito da Selva’, publicado em mil novecentos e três. Nele é relatada com uma profundidade envolvente, a vida corriqueira de um simples cãozinho doméstico, manso, simpático e sensível até dizer chega.
De repente, do nada o bichinho se viu arrancado meio que à força do seu
cubículo familiar e pacato, para se tornar brabo e feroz libertando, de uma só
vez, todos os seus instintos antagônicos e funestos. Por assim, de um simples
totó de tapete de sala da fazenda de um juiz Miller, ao ser vendido pelo seu antigo
dono a um desconhecido, se viu obrigado a se tornar brutal e alarvado (1) em
face do chocante ocorrido em sua desvanecida existência canina, ou seja, o
infeliz passou a purgar seus dias diante da árida paisagem do Ártico.
Buck, o herói de toda a narrativa, em face dessa mudança insana, abrupta
e severa, passou a enfrentar uma matilha de lobos perigosos. Em dias de hoje,
pasmem, amigas, em dias de hoje, sem tirar nem pôr, se assemelharia a nós (e
quando menciono nós, faço referência direta a todos os seres humanos). Todos
nós, ou todas nós, ‘entre aspas’ -, seres pensantes -, somos um pouco do
pitoresco e manso Buck de London. Vivemos, como ele, aprisionados num canil
gigantesco apelidado de ‘brasil’.
Estamos rodeados de mil outras catervas (2) oriundas das mais diversas raças e ascendências. Todas, a bem da verdade, apodrecidas. Dito de forma mais categórica, a maioria desses vermes, trazidos de regiões e terras desconhecidas. Vegetamos um espaço ascoso (3) e emporcalhado em decorrência da abundância desenfreada de uma legião incalculável de animais parasitados.
Nos tornamos uma espécie de tipologia estranha, ignóbil, estraçalhada,
abodegada, nauseabundada por forças literalmente alienígenas. Como o caseiro e dócil Buck, fomos arrancados
do nosso habitat natural e jogados às feras. Passamos a respirar um ar podrido,
fétido, improfícuo (4) e baldio (5). Como num terreno ocioso e clandestino,
tipo a Cracolândia (apenas como exemplo ilustrativo), onde ninguém é de ninguém
e todo mundo é uma ínfima fatia de toda a ‘comunidade nojosa e reprovável’.
Entendam, amigas, como ‘comunidade nojosa e reprovável’, um agreste sem
eira nem beira, sem lei, sem ordem, sem as vicissitudes de uma vida limpa e
transparente. Em oposto, matrimoniada de todas as degenerescências existentes.
Fingimos encarar nosso lúgubre naco de chão arrostando (6) os dissabores a
trancos e barracos, tentando de todas as formas nos mantermos respirando. Pois
é, amigas. Levamos ao ‘salve-se quem puder’, empurrando para a barriga as águas
desenfreadas das mazelas que a cada minuto que passa se nos apresentam
desenhando horizontes de rostos e focinhos maquiados e incertos.
Nossas forças, a cada piscar de olhos, tendem a se tornarem fracas e paralíticas. Urge, pois, que nos demos as mãos. Para ontem. Em contínuo, nos entrelaçarmos agora, no minuto seguinte, para nos assemelharmos, ao menos em vontade e desejo, às forças do pequeno Buck para chegarmos com fôlego suficiente em algum lugar mais aconchegante que esse campo de guerra cercado de lobos em que vivemos. Tudo isso, obviamente, se quisermos ver um novo amanhecer. Um só, que seja. Ao menos um bocadinho que nos fascine a Esperança derreada com os raios fulgurantes de um NOVO PORVIR.
Notas de rodapé:1) Alarvado – Surpreso ou irreverente com algo chocante que aconteceu.
2) Catervas – Vadios e desocupados.
3) Ascoso – Tudo o que provoca asco ou nojo.
4) Improfícuo – Coisa inútil e fracassada.
5) Baldio – Que não tem utilidade.
6) Arrostando – Corajoso, ou aquele que não tem medo, que encara.
Título e Texto: Carina Bratt. Da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 4-12-2022
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ResponderExcluirAparecido Raimundo de Souza
da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.