sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Um AI-5 de toga

Moraes lidera outra reedição da marcha da insensatez. Nenhuma acabou bem

Augusto Nunes

“Seja mais Andrada e menos Zezinho!”, gritou no plenário o deputado mineiro Celso Passos. Naquele 13 de dezembro de 1968, a exortação pretendia animar o presidente da Câmara — José Bonifácio Lafayette de Andrada, o “Zezinho Bonifácio”— a resistir à decretação do Ato Institucional nº 5. Em resposta aos parlamentares que haviam rejeitado na véspera o pedido de licença para processar o deputado Márcio Moreira Alves, o general-presidente Artur da Costa e Silva oficializara o nascimento de uma genuína ditadura. O descendente do Patriarca da Independência foi mais Zezinho do que nunca: cruzando os braços, respondeu ao apelo de Passos com uma histórica “banana”. O Congresso foi fechado horas depois. Só muito tempo mais tarde se saberia que naquela mesma sexta-feira 13, junto com o AI-5, nasceu Alexandre de Moraes.

O destino pode ser determinado pela data de nascimento, sugerem os capítulos recentes da biografia do advogado que virou promotor público e professor de Direito Constitucional que virou secretário municipal e depois estadual que virou ministro da Justiça e acabou virando ministro do Supremo Tribunal Federal por indicação do presidente Michel Temer. Aos 50 anos, Moraes ainda atravessava a infância no Pretório Excelso quando o presidente Dias Toffoli resolveu encarregá-lo, em 2019, de tratar a tiro, porrada e bomba qualquer vivente insatisfeito com o Timão da Toga. Três anos depois da declaração de guerra a fabricantes de fake news e parteiros de “atos antidemocráticos”, o protagonista do mais audacioso faroeste à brasileira juntou dois inquéritos obscenamente ilegais, fez da mistura um AI-5 de toga e, com o autorização dos parceiros hostis ao presidente da República, proclamou a ditadura do Judiciário.

Em 12 de dezembro de 1968, 216 deputados federais rejeitaram uma exigência do governo militar que feria mortalmente as imunidades parlamentares e a liberdade de expressão. Além dos 12 que se abstiveram, 141 supostos representantes do povo mandaram às favas tais garantias constitucionais. Em fevereiro de 2021, quando a prisão do deputado Daniel Silveira foi avalizada por 364 votos contra 130, a bancada suprapartidária dos covardes mostrou-se amplamente majoritária — e deixou claro que a Câmara acompanharia de cócoras o desfile de abusos. O balanço de 2022 informa que os zezinhos bonifácios que infestam e dominam o Congresso engoliram sem engasgos o AI-5 da Toga.

Embora a Constituição estabeleça a igualdade dos três Poderes, Moraes decidiu que o Judiciário é mais igual que os outros

No Senado, dezenas de pedidos de impeachment sustentados por pilhas de provas contundentes cruzaram o ano ressonando no fundo do baú de iniquidades niveladas pela grife Rodrigo Pacheco. No fim de novembro, para que futuros presidentes nem ousem sonhar com a antecipação de supremas aposentadorias, Renan Calheiros concebeu uma proposta de emenda constitucional que torna a demissão de um juiz do STF tão provável quanto a canonização de Frei Betto. Faz tempo que o líder perpétuo da bancada do cangaço lidera o ranking dos campeões de processos em tramitação no STF. Como o ministro Edson Fachin [foto] acaba de arquivar mais um, tornou-se recordista também na modalidade não olímpica reservada a especialistas no sepultamento de casos de polícia encaminhados ao Egrégio Plenário. No peito do delinquente alagoano bate um coração agradecido a quem o trata como bandido de estimação. 

Aos olhos de Moraes, o fim da campanha eleitoral foi a senha para a abertura de uma frente de guerra ainda mais abrangente. Alternando as fantasias de Pai da Democracia e Mãe da Verdade, o ministro que desempenha simultaneamente os papeis de vítima, detetive, delegado, promotor e juiz ampliou o acervo de proezas. Numa única semana, por exemplo, prendeu um empresário, encurtou o mandato de um prefeito, proibiu a entrada na internet de parlamentares eleitos ou no exercício do cargo e suspendeu a censura imposta a dois deputados, fora o resto. Colérico com uma respeitosa mensagem da OAB, que apenas queria saber se o destinatário poderia revelar aos advogados dos perseguidos quais teriam sido os crimes cometidos pelos clientes, Moraes dispensou-se de repassar o pedido a um assessor mais gentil com o idioma. Redigida por ele mesmo, a resposta só serviu para confirmar que, caso fosse submetido a uma prova de redação, o autor não escaparia de um zero com louvor.

Embora a Constituição estabeleça a igualdade dos três Poderes, Moraes decidiu que o Judiciário é mais igual que os outros. Sem interromper a sequência de confiscos de atribuições do Executivo, ele deu de invadir territórios do Legislativo com a insolência de quem sabe que não haverá resistência. Os presidentes do Senado e da Câmara fingiram nem ter notado a série de estupros da imunidade parlamentar. O deputado Arthur Lira limitou-se a pedir-lhe que fosse suspensa a censura imposta aos representantes do povo. (Até um Zezinho Bonifácio, confrontado com tamanha arrogância, seria mais Andrada e, em vez de pedir, exigiria.) Também por isso, Moraes parece ter esquecido que toda determinação do Supremo se ampara no poder moral da instituição.

As decisões dos juízes são obedecidas graças a essa força invisível, que pode ser reduzida a zero se afrontarem artigos dos códigos em vigor ou normas constitucionais. O que fará Alexandre de Moraes caso um delegado de Polícia Federal se rebele ao receber uma ordem ilegal? No Tribunal de Nuremberg, chefes nazistas tentaram driblar o castigo invocando a teoria da obediência devida: quem cumpre ordens vindas de instâncias superiores não pode ser responsabilizado por suas consequências. Quem faz o que a lei proíbe é cúmplice, reafirmaram os juízes. Todos os réus acabaram no patíbulo ou envelheceram na cadeia.

E o que fará o STF se um general determinar que sejam acomodados no quartel brasileiros acuados por policiais designados para dissolver a manifestação de protesto?

Nessa hipótese, os superdoutores vão encarregar a ministra Cármen Lúcia de comunicar aos desobedientes que decisão judicial é para ser cumprida? Eis aí uma ideia perigosa. A emissária poderá ouvir que quem cumpre ordem ilegal é cúmplice de um crime. Alguém provavelmente lembrará que é do povo que emana todo o poder, exercido por representantes eleitos ou diretamente. E outra voz anônima haverá de dizer que, como ensinava a antiga Cármen Lúcia, cala a boca já morreu.

Melhor deter enquanto é tempo a ofensiva do ministro municiado com o AI-5 de toga. O que se vê no Brasil é mais uma reedição da marcha da insensatez. Nenhuma acabou bem.

Título e Texto: Augusto Nunes, Revista Oeste, nº 142, 9-12-2022

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