Moraes lidera outra reedição da marcha da
insensatez. Nenhuma acabou bem
Augusto Nunes
“Seja mais Andrada e menos Zezinho!”, gritou no plenário o deputado mineiro Celso Passos. Naquele 13 de dezembro de 1968, a exortação pretendia animar o presidente da Câmara — José Bonifácio Lafayette de Andrada, o “Zezinho Bonifácio”— a resistir à decretação do Ato Institucional nº 5. Em resposta aos parlamentares que haviam rejeitado na véspera o pedido de licença para processar o deputado Márcio Moreira Alves, o general-presidente Artur da Costa e Silva oficializara o nascimento de uma genuína ditadura. O descendente do Patriarca da Independência foi mais Zezinho do que nunca: cruzando os braços, respondeu ao apelo de Passos com uma histórica “banana”. O Congresso foi fechado horas depois. Só muito tempo mais tarde se saberia que naquela mesma sexta-feira 13, junto com o AI-5, nasceu Alexandre de Moraes.
O destino pode ser determinado
pela data de nascimento, sugerem os capítulos recentes da biografia do advogado
que virou promotor público e professor de Direito Constitucional que virou
secretário municipal e depois estadual que virou ministro da Justiça e acabou
virando ministro do Supremo Tribunal Federal por indicação do presidente Michel
Temer. Aos 50 anos, Moraes ainda atravessava a infância no Pretório Excelso
quando o presidente Dias Toffoli resolveu encarregá-lo, em 2019, de tratar a
tiro, porrada e bomba qualquer vivente insatisfeito com o Timão da Toga. Três
anos depois da declaração de guerra a fabricantes de fake news e
parteiros de “atos antidemocráticos”, o protagonista do mais audacioso faroeste
à brasileira juntou dois inquéritos obscenamente ilegais, fez da mistura um
AI-5 de toga e, com o autorização dos parceiros hostis ao presidente da
República, proclamou a ditadura do Judiciário.
Em 12 de dezembro de 1968, 216
deputados federais rejeitaram uma exigência do governo militar que feria
mortalmente as imunidades parlamentares e a liberdade de expressão. Além dos 12
que se abstiveram, 141 supostos representantes do povo mandaram às favas tais
garantias constitucionais. Em fevereiro de 2021, quando a prisão do deputado
Daniel Silveira foi avalizada por 364 votos contra 130, a bancada
suprapartidária dos covardes mostrou-se amplamente majoritária — e deixou claro
que a Câmara acompanharia de cócoras o desfile de abusos. O balanço de 2022
informa que os zezinhos bonifácios que infestam e dominam o Congresso engoliram
sem engasgos o AI-5 da Toga.
Embora
a Constituição estabeleça a igualdade dos três Poderes, Moraes decidiu que o
Judiciário é mais igual que os outros
Aos olhos de Moraes, o fim da
campanha eleitoral foi a senha para a abertura de uma frente de guerra ainda
mais abrangente. Alternando as fantasias de Pai da Democracia e Mãe da Verdade,
o ministro que desempenha simultaneamente os papeis de vítima, detetive,
delegado, promotor e juiz ampliou o acervo de proezas. Numa única semana, por
exemplo, prendeu um empresário, encurtou o mandato de um prefeito, proibiu a
entrada na internet de parlamentares eleitos ou no exercício do cargo e
suspendeu a censura imposta a dois deputados, fora o resto. Colérico com uma
respeitosa mensagem da OAB, que apenas queria saber se o destinatário poderia
revelar aos advogados dos perseguidos quais teriam sido os crimes cometidos
pelos clientes, Moraes dispensou-se de repassar o pedido a um assessor mais
gentil com o idioma. Redigida por ele mesmo, a resposta só serviu para
confirmar que, caso fosse submetido a uma prova de redação, o autor não
escaparia de um zero com louvor.
Embora a Constituição
estabeleça a igualdade dos três Poderes, Moraes decidiu que o Judiciário é mais
igual que os outros. Sem interromper a sequência de confiscos de atribuições do
Executivo, ele deu de invadir territórios do Legislativo com a insolência de
quem sabe que não haverá resistência. Os presidentes do Senado e da Câmara
fingiram nem ter notado a série de estupros da imunidade parlamentar. O
deputado Arthur Lira limitou-se a pedir-lhe que fosse suspensa a censura
imposta aos representantes do povo. (Até um Zezinho Bonifácio, confrontado com
tamanha arrogância, seria mais Andrada e, em vez de pedir, exigiria.) Também
por isso, Moraes parece ter esquecido que toda determinação do Supremo se
ampara no poder moral da instituição.
As decisões dos juízes são
obedecidas graças a essa força invisível, que pode ser reduzida a zero se
afrontarem artigos dos códigos em vigor ou normas constitucionais. O que fará
Alexandre de Moraes caso um delegado de Polícia Federal se rebele ao receber
uma ordem ilegal? No Tribunal de Nuremberg, chefes nazistas tentaram driblar o
castigo invocando a teoria da obediência devida: quem cumpre ordens vindas de
instâncias superiores não pode ser responsabilizado por suas consequências.
Quem faz o que a lei proíbe é cúmplice, reafirmaram os juízes. Todos os réus
acabaram no patíbulo ou envelheceram na cadeia.
E o que fará o STF se um
general determinar que sejam acomodados no quartel brasileiros acuados por
policiais designados para dissolver a manifestação de protesto?
Nessa hipótese, os
superdoutores vão encarregar a ministra Cármen Lúcia de comunicar aos
desobedientes que decisão judicial é para ser cumprida? Eis aí uma ideia
perigosa. A emissária poderá ouvir que quem cumpre ordem ilegal é cúmplice de
um crime. Alguém provavelmente lembrará que é do povo que emana todo o poder,
exercido por representantes eleitos ou diretamente. E outra voz anônima haverá
de dizer que, como ensinava a antiga Cármen Lúcia, cala a boca já morreu.
Melhor deter enquanto é tempo
a ofensiva do ministro municiado com o AI-5 de toga. O que se vê no Brasil é
mais uma reedição da marcha da insensatez. Nenhuma acabou bem.
Título e Texto: Augusto
Nunes, Revista Oeste, nº 142, 9-12-2022
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