A realidade é que Alexandre de Moraes e seus colegas não tiveram, em nenhum momento, a menor objeção dos militares para tomar qualquer medida que tomaram
J. R. Guzzo
Ditaduras, uma vez que são
impostas a algum país, não costumam ser biodegradáveis, nem passíveis de
reciclagem. Não se tornam mais suaves, racionais ou justas com o passar do
tempo, nem se transformam em outro material. Nunca recuam, nem cedem um
milímetro do poder que tomaram, nem ficam mais inofensivas. Jamais abrem mão da
sua violência — ao contrário, a repressão, as punições e a eliminação dos
direitos individuais e das liberdades públicas só se tornam piores.
É inútil ser tolerante, ou
compreensivo, ou “pragmático” com elas, na esperança de satisfazer os
ditadores; eles não se satisfazem nunca. São ditaduras, unicamente isso, e a
cada dia de vida que ganham ficam com mais cara, corpo e alma de ditadura. É o
caso do Brasil de hoje, obviamente. Deixaram, cerca de quatro anos atrás, que o
Supremo Tribunal Federal começasse a violar abertamente a Constituição e o
restante da legislação em vigor no Brasil, num projeto para entregar o controle
do país aos ministros e às forças que os apoiam.
Hoje a ditadura está operando
com todas as turbinas ligadas, e raramente passa um período de 24 horas sem que
seus operadores deixem de aprofundar o estado de exceção que criaram. É um
golpe de estado em câmara lenta, sem tanques na rua e com golpistas que usam
toga de juiz em vez de farda de general — mas é golpe do mesmo jeito. O fato é
que a ditadura ganhou, e amanhã vai estar mais destrutiva do que é hoje.
A última prova material, objetiva e indiscutível de que o Brasil vive numa ditadura do Poder Judiciário é a cassação, por parte do ministro Alexandre de Moraes, do direito de palavra da deputada federal Bia Kicis nas redes sociais; também foi punido o seu colega Júnio Amaral, e ambos se juntam à deputada Carla Zambelli, que está silenciada desde o dia 1º de novembro. É, como tantas outras, uma decisão absolutamente ilegal.
O STF simplesmente não pode
proibir um deputado federal de manifestar a sua opinião; nem o STF e nem
ninguém. A Constituição diz, em português claríssimo e compreensível até para
um analfabeto, que os parlamentares brasileiros têm o direito de levar ao
público quaisquer opiniões — e esse quaisquer quer
dizer todas, sem exceção de nenhuma, para que jamais haja
nenhuma dúvida a respeito, nem justificativas para a violação do que foi
escrito.
Não se trata de um acaso. Essa
palavra foi colocada de propósito no texto da Constituição, justamente para
impedir que alguém pudesse fazer o que o ministro Moraes está fazendo: alegar
algum motivo de “interesse superior” para confiscar de um deputado federal
brasileiro o direito de exercer plenamente o mandato que lhe foi conferido
pelos eleitores — mais de 200.000 cidadãos de Brasília, no caso específico de
Bia Kicis. Não interessa o que a deputada disse, e menos ainda se o que disse
está certo ou errado. A única coisa que deveria valer é a regra escrita na
Constituição: ela não pode ser impedida de falar o que quiser. Essa regra não
vale mais nada no Brasil de hoje.
Já não existe há bom tempo,
por parte de Alexandre de Moraes e de qualquer dos seus colegas, nem mesmo
alguma tentativa remota de disfarçar a ilegalidade dos atos que praticam.
Disfarce para quê? Uma ditadura, depois que se estabelece, não precisa
disfarçar mais nada; faz, no caso brasileiro, uma encenação de que age em
defesa da “democracia”, mas na prática toma as decisões que quer e não dá
satisfação a ninguém. No episódio com Bia Kicis, não foi dado nem mesmo um
motivo para a punição — a deputada foi expulsa das redes, e ponto final.
No caso de Carla Zambelli, o
ministro decidiu que ela tinha “o nítido propósito” de romper “com o Estado
Democrático de Direito”. Que disparate é esse? Como uma autoridade pode
determinar qual é o “propósito” de alguém ao dizer isso ou aquilo? Que lei o
autoriza a fazer esse tipo de adivinhação — que ainda por cima, como no caso de
Bia Kicis, anula um mandamento constitucional? Moraes fala, também, numa
“Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação”. Que diabo vem a ser
isso? O órgão, com um desses nomes que encantam ditadores de Cuba à Coreia do
Norte, não tem existência legal; foi inventado por Moraes e não poderia, assim,
ser acionado para nada. Mas é usado como mais uma polícia do STF, para caçar
mensagens “suspeitas” nas redes e aplicar multas de R$ 150.000 por hora.
Naturalmente, como Moraes vem fazendo desde que a ditadura começou a ser
implantada no Brasil, nenhuma das punições obedeceu a processo legal — uma
aberração que só existe em países onde o sistema judicial funciona no estilo do
falecido ditador Idi Amin, ou de alguma outra republiqueta africana controlada
por gângsters.
Assassinos, traficantes de
droga e estupradores têm direito a todas as regras estabelecidas em lei quando
são acusados de algum crime; os deputados perseguidos pelo STF não têm. São
punidos por decisão pessoal de Moraes, sem processo nenhum, sem advogados, sem
direito sequer de ser informados do que fizeram. Se isso não é uma ditadura,
então o que é?
A discussão a esse respeito,
em todo o caso, já ficou para trás — o que importa é a realidade que existe
hoje, e essa realidade mostra que a ditadura do judiciário não apenas está aí,
mas conta com imensos apoios nas forças que têm influência prática no Brasil.
Não poderia ter aparecido, na verdade, se não tivesse tido esse apoio desde os
seus primeiros passos; não faz sentido acreditar que seja uma iniciativa
individual, isolada e exclusiva de Moraes e do STF.
O regime de exceção que
manda hoje no Brasil só existe, objetivamente, porque há muita gente querendo
que ele exista. A principal fonte de sua força na vida real, até agora, vem
da aprovação silenciosa que recebe das Forças Armadas — a única instituição que
tem meios materiais efetivos para deter a ação dos ministros.
Os comandantes militares não
fizeram, e nem era preciso que fizessem, um manifesto a favor do golpe em fatias
que levou o país à situação em que se encontra neste momento. Obviamente, não
assinaram um documento dizendo: “Nós, comandantes das três armas, fechamos um
acordo com os ministros do STF para impor ao Brasil uma ditadura do Poder
Judiciário”. Para que isso? Bastou que ficassem olhando sem fazer nada enquanto
o regime de leis e a Constituição eram destruídos dia após dia pelas decisões
do STF.
A realidade, comprovada pelos
fatos e acima de qualquer dúvida permitida pela lógica comum, é que Alexandre
de Moraes e seus colegas não tiveram, em nenhum momento, a menor objeção dos
militares para tomar qualquer medida que tomaram.
Os ministros do STF agiram,
desde a sua primeira agressão ao sistema legal — a proibição para o presidente
da República nomear o diretor de sua escolha para a Polícia Federal —, com a
certeza de que ninguém iria se opor a nada do que fizessem. De lá para cá não
pararam mais. Eliminaram a lei, aprovada legitimamente pelo Congresso Nacional,
que estabelecia o cumprimento de pena de prisão para os réus criminais
condenados em segunda instância — o que, simplesmente, tirou o ex-presidente
Lula da cadeia.
Anularam as ações penais
existentes contra ele, incluindo sua condenação por corrupção passiva e lavagem
de dinheiro — o que o livrou da ficha suja e permitiu a sua candidatura à
Presidência nas últimas eleições. Acabaram com praticamente todas as
condenações da Operação Lava Jato — o único momento, em todos os 500 anos de
história do Brasil, em que a justiça mandou para a cadeia condenados por
corrupção de primeira grandeza.
Montaram, em seguida, a eleição mais viciada que o país já teve — num dos seus melhores momentos, proibiram o presidente de exibir em sua campanha eleitoral as manifestações públicas e legais do último Sete de Setembro. Em outra ocasião extrema, o ministro Luís Roberto Barroso [foto], o jurista do “Perdeu, mané”, disse que “eleição não se ganha, se toma”; acharam que estava sendo um homem espirituoso.
Os membros da corte suprema
punem cidadãos, e parlamentares, por crimes que não existem no Código Penal e
em nenhuma lei brasileira. Bloquearam, sem qualquer vestígio de procedimento
legal, contas bancárias de empresários que não cometeram delito algum.
Proibiram as pessoas de se manifestarem nas redes sociais. “Desmonetizaram”
quem entrou em sua lista negra. Censuraram a imprensa. Acabaram com o direito
ao sigilo. Não permitem até hoje que os advogados tenham acesso aos autos nos
processos de que seus clientes são vítimas. Cassaram o direito de palavra das
deputadas. Acabam de prender um empresário por exercer o direito de convocar
uma manifestação pública — no caso, de caçadores e de colecionadores de armas,
atividades perfeitamente legítimas neste país. Em nenhum momento, nem no
passado e nem agora, as Forças Armadas disseram uma sílaba a respeito de
qualquer dessas violações da lei.
Em
nenhum momento, nem no passado e nem agora, as Forças Armadas disseram uma
sílaba a respeito de qualquer dessas violações da lei
Exército, Marinha e
Aeronáutica se comportam hoje, para todos os efeitos práticos, como uma
repartição pública sem maior significado. Estão basicamente preocupados com os
seus soldos, aposentadorias, benefícios — incluindo os R$ 500 milhões pagos por
ano a familiares, a título de pensão. Não ajudam em nada, com os seus tanques
de guerra, mísseis de longo alcance ou caças a jato, a segurança do cidadão
brasileiro — cada vez mais destruída pelo crime e pelos criminosos. Não
defendem o território nacional de nenhuma invasão estrangeira, pois até uma
criança com 10 anos de idade sabe perfeitamente bem que nenhum país vai invadir
o Brasil. Não conseguem, nem mesmo, a autorização para comprar um lote de 100
novos tanques — o PT não deixa.
Também não estão exercendo,
com atos concretos, a sua obrigação legal de fazer cumprir a Constituição — ou
então acham que nenhum dos fatos expostos acima pode ser descrito como violação
constitucional, da ordem e do Estado de Direito. Não têm lideranças. Não
parecem interessados em assumir responsabilidades maiores ou diferentes das que
já têm; talvez nem consigam fazer isso no mundo de hoje, mesmo que quisessem. A
verdade, de qualquer forma, é que os militares não manifestaram nenhuma
oposição às ações do STF — e os ministros vêm se sentindo livres, há quatro
anos, para fazer tudo o que têm feito.
O outro grande braço que dá
força ao STF, e que tem sido essencial para sustentar a sua ditadura, é a
classe política brasileira — não toda, é claro, mas a maioria necessária para
manter o Congresso Nacional numa postura de submissão absoluta ao Supremo. Um
Congresso que se coloca de quatro diante deles — o que mais os ministros poderiam
querer?
A maior parte dos senadores e
deputados apoia histericamente o STF; pedem a punição de colegas com mandato,
canonizaram o ministro Moraes como o “salvador” da democracia no Brasil e
querem, pela proposta de um dos mais notórios chefes da facção do Senado que
reúne refugiados do Código Penal, dar mais poderes ao tribunal e legalizar suas
agressões à Constituição.
Os dois presidentes são o pior
de tudo. O do Senado é um militante aberto do golpe — recusa-se, sem nenhum
apoio legal, a permitir que os senadores discutam a conduta do Supremo, e com
isso tira de funcionamento o único mecanismo constitucional que poderia
controlar a sua conduta.
O presidente da Câmara entrará
na história pela realização de algo provavelmente jamais ocorrido em qualquer
parlamento do mundo — aceitou sem dar um pio a prisão por nove meses de um
deputado federal em pleno exercício do seu mandato. O deputado não tinha
cometido nenhum crime inafiançável e nem foi preso em flagrante, as únicas
hipóteses que permitem a prisão de um parlamentar — o que Alexandre de Moraes e
o STF fizeram com ele foi possivelmente a sua ilegalidade mais indiscutível e
escandalosa. E daí?
A maioria do Congresso ficou a
favor da punição ao colega; é a favor de qualquer coisa que o STF decide. Se o
ministro Moraes, um dia desses, mandar fuzilar o deputado, ou qualquer outra
pessoa, a ordem vai ser cumprida. Ele não terá a menor dificuldade de achar na
Polícia Federal, ou no Exército, ou em alguma das 27 PMs, o pelotão de
fuzilamento; o deputado Arthur Lira e o senador Rodrigo Pacheco, presidentes da
Câmara e do Senado, mais os componentes da mesa, iriam comparecer à execução e
bater palmas no final.
É uma sorte para todos,
realmente, que o ministro Moraes não esteja querendo fuzilar ninguém, ao menos
tanto quanto se saiba, porque não precisa fazer isso. A ditadura do judiciário
já ganhou. Tem todo o apoio necessário para ficar de pé e para continuar
prosperando.
Título e Texto: R. Guzzo,
Revista Oeste, nº 142, 9-12-2022
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