Ando lendo o romance AS
BENEVOLENTES, do Jonathan Littell (Rio de Janeiro, Objetiva, 2007) e já superei
uma boa metade do volumoso livro. A narrativa é chocante, ali vemos que todas
as leis e todos os marcos civilizatórios foram derrogados. Um delírio coletivo
sanguinário tomou conta de toda a gente na Alemanha de Hitler. Penso que algo
equivalente deu-se com a revolução bolchevique, tão sanguinária e tão genocida
quanto. Diálogos inseridos pelo próprio Littell demonstram o parentesco ente o
nazismo e o comunismo.
Littell, como Thomas Mann, fez
do seu personagem um doutor. No caso, em Direito. Muito apropriado que um
doutor em Direito, leitor de Kant, tenha aceitado alegremente ser um carrasco
da SS. O próprio Doutor Fausto encarnado. O que choca no nazismo não é que o
populacho, sempre infame e de instintos baixos e primitivos, tenha tido as
rédeas do poder. Não! Foram os sofisticados intelectuais que aderiram sem peias
ao irracionalismo homicida que redundou na hecatombe da II Guerra Mundial.
[Importa observar que no
Brasil algo semelhante tem acontecido com a nossa classe letrada em relação ao
PT. Alegremente deram sua adesão e seu consentimento. Por sorte este partido
não teve forças para o terceiro mandato de Lula e não conseguiu governar o
Estado de São Paulo, o que impediu até agora a tentação autoritária de governar
por decreto. Mas o anseio para estar acima do bem e do mal não é escondido
pelos petistas e é questão de tempo e oportunidade que se sintam à vontade para
negar os valores elementares da civilização. Como na Alemanha, a adesão dos
letrados se deu em simultâneo com a adesão dos empresários. Por isso que não há
oposição no Brasil, como não houve oposição a Hitler.]
Nos últimos anos tenho tentado
me dar uma resposta para essa questão da perda dos valores civilizacionais, o
mergulho no irracionalismo genocida. A resposta que encontrei está no âmbito da
filosofia política, com o respectivo desdobramento no campo do Direito. O corte
essencial se deu no Renascimento, com a emergência do Estado nacional, e a
Reforma, que deificou o direito positivo. A reviravolta na ciência política,
desde Maquiavel, levou à superação do direito natural. Desde então a fonte do
Direito deixou de ser transcendente para se escorar unicamente no poder do
príncipe. Esse foi o declínio civilizacional que abriu caminho para todos os
crimes amparados nas razões de Estado, que temos visto desde as guerras
religiosas.
O abandono do direito natural
consolidou-se nos juristas do século XVII, especialmente com Hobbes e Grocius.
Então a expressão direito natural passou a designar algo diverso do que até
então se entendia por ela. A fonte do Direito foi transferida para a razão, o
que equivale a dizer: para o príncipe. O golpe final veio com a democracia de
voto universal, que deu às massas o poder de demandar seus preconceitos e
instintos baixos para o governante, que se viu na contingência de procurar
atende-las. Governar deixou de ser a busca do bem comum para ser o cultivo das
multidões insaciáveis.
O fim da II Guerra Mundial
levou a que juristas e filósofos meditassem sobre o totalitarismo. Era preciso
responder: como foi possível? No plano conservador a resposta foi dada
adequadamente por Eric Voegelin e Leo Strauss: o ponto estava no positivismo
jurídico e o caminho de volta à civilização levava ao retorno ao direito
natural. Foram derrotados pela corrente alternativa, a que vinha do
jus-naturalismo de Hobbes e Locke: pela tese dos direitos humanos. A ironia é
que as boas intenções liberais que tentaram conter a lama negra do
totalitarismo com essa perfumaria já estavam derrotadas pela empolgação da tese
pelos radicais de esquerda, que fizeram dos direitos humanos panfletos
telegráficos para subverter a ordem liberal e restaurar o cinismo do
positivismo jurídico com toda pompa. Viu-se, na segunda metade do século XX, o
triunfo das teses do partido revolucionário, primeiro nas organizações
multilaterais, como a ONU, depois pela paulatina substituição da legislação de
cada país por sua forma jurídica uniformizadora em escala planetária.
Nomes como Norberto Bobbio e
John Rawls prevaleceram, a partir do ponto de vista de Antonio Gramsci, sobre
as posições conservadoras. Se é certo que Eric Voegelin e Leo Strauss
inspiraram Ronald Reagan e os Bush, sua influência não passou de inspiração
para o governante, jamais para a estrutura do Estado. O direito natural não
poderia ser restabelecido se todas as escolas de Direito ensinavam a visão
alternativa. O pensamento único em direito virou uma realidade. Foi a vitória
completa do igualitarismo revolucionário.
[Uma das coisas notáveis da
política em São Paulo é a enorme taxa de rejeição de José Serra. Mesmo os
acadêmicos vinculados à sua escola de origem, a Unicamp, rejeitam-no
vigorosamente porque José Serra ousou defender as privatizações. Pecado
imperdoável para aqueles que desejam uma economia plenamente estatizada, mesmo
contrariando a experiência que mostrou ser irracional e contraproducente a
estatização total. Essa gente quer isso. É a sua meta e é questão de tempo que
a alcancem. A rejeição a José Serra é a mesma de que padece Fernando Henrique
Cardoso, pelas eventuais coisas boas que fizeram enquanto governantes.]
Os tempos de crise que se
abrem agora colocam os mesmos problemas e os mesmos riscos e dilemas que foram
colocados para aqueles que viviam na década de Trinta do século passado. Aderir
ou não aderir não é pergunta que se faça, já que todos aderiram ao poder
estabelecido. A impressão que tenho é que os milhões de mortos no altar da
estupidez não deixaram lições preventivas, exatamente porque essa nefasta
experiência não trouxe impactos no mundo jurídico. De novo o positivismo nas
letras jurídicas triunfa. Por isso que a agenda revolucionária em matéria de
costumes não encontra objeção de consciência. O ambientalismo, o gaysismo, o
abortismo, a destruição acelerada da família monogâmica encontram-se em estado
avançado. A supertributação é vista como normalidade. Se é a vontade do
governantes, só cabe obedecer e não questionar. Sabemos muito bem onde esse
caminho levará. Basta ler o livro de Jonathan Littell. O matadouro pode estar
na curva do tempo.
Título e Texto: Nivaldo
Cordeiro, 01-12-2011
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