Gilmar Mendes lidera o elenco de ministros que soltam bandidos e perseguem o xerife
Augusto Nunes
As obras que inauguraram o faroeste
à brasileira, surgido na primeira década deste século, patentearam uma fórmula
mais audaciosa que qualquer ousadia do Cinema Novo. Os roteiros viram pelo
avesso os similares norte-americanos. É o bandido que persegue o mocinho, é o
vilão que vive tentando prender o xerife, as mulheres bonitas são cúmplices dos
delinquentes e o final é infeliz para gente honesta: os fora da lei acabam se
livrando da cadeia. Foi assim, por exemplo, em O Mensalão Não Existiu,
um clássico do gênero. Alguns figurantes foram transferidos do semianonimato
para a gaiola. Mas os oficiais graduados do exército de gatunos nem esquentaram
o merecidíssimo catre. Logo devolvidos à liberdade, seguiram berrando que a
roubalheira foi uma invencionice de inimigos dispostos a tudo para minar a
popularidade do chefão que dormia sonhando com a erradicação da pobreza e
acordava planejando o sumiço da miséria absoluta.
Essas manifestações de cafajestagem farisaica, elevadas à categoria de arte nos oito anos de governo Lula, parecem coisa de principiante se confrontadas com a safra mais recente de faroestes à brasileira. Agora, os bandidos perseguem o mocinho e os vilões buscam prender o xerife com a ajuda de integrantes do grupo formado por 11 juízes que podem julgar qualquer coisa ou decidir o destino de qualquer vivente e não podem ser julgados por ninguém. São nove homens e duas mulheres, que se reúnem no Supremo Tribunal Federal. Todos cobrem com togas negras o terno escuro-Brasília ou o vestido missa das 10 no interior. Entram no plenário em fila indiana, para a abertura da sessão ou para recomeçá-la, com o semblante severo de quem chegou ao velório no momento do fechamento do caixão. Falam um dialeto inacessível a quem só fala língua de gente. Referem-se uns aos outros como “eminente ministro” (ou “eminente ministra”). Alternam o latinório com citações de juristas alemães ou italianos. O mais antigo da turma é chamado de “decano”.
Bonito é pouco para qualificar
o buquê de pompas e fitas. Feio é pouquíssimo para definir o papelão que anda
fazendo a maioria dos doutores em tudo. Neste fevereiro sem Carnaval, o elenco
se divide entre os discípulos de Gilmar Mendes e os outros. Já faz tempo que
Ricardo Lewandowski, Dias Toffolli e Alexandre de Moraes se orientam pela
palavra do Mestre, que anda se gabando de ter transformado o trio em quarteto
com a anexação de Cármen Lúcia. Se não estiver mentindo, e contando com o líder
da bancada, já são cinco. Único indicado por Jair Bolsonaro, Kássio Marques
ainda engatinha no Pretório Excelso. Mas o bloco se tornará majoritário caso o
caçula continue percorrendo caminhos que levam ao colo de Gilmar Mendes. Se tal
desastre for consumado, tirem as crianças da sala quando os seis derem as caras
na TV Justiça. E preparem o estômago, reiterou nesta semana o desempenho de
Gilmar, Cármen Lúcia, Lewandowski e Marques na sessão da Segunda Turma que fez
o diabo para transformar um corrupto juramentado em vítima de medonhas
injustiças, Sergio Moro e os procuradores da Lava Jato em algozes desalmados e
a mais produtiva operação anticorrupção de todos os tempos numa tentativa de
assassinato do direito de ampla defesa e do devido processo legal. Haja
cinismo.
A trupe de Gilmar faz de conta
que o ex-presidente foi alvo de complô
Em tese, os ministros estavam
numa sala do STF para decidir se Lula deveria ou não ter acesso a mensagens
supostamente trocadas por profissionais engajados na Lava Jato e furtadas
por hackers. Quem vê as coisas como as coisas são enxergou
nitidamente o último ensaio dos canastrões empenhados em anular a condenação de
Lula pelas maracutaias que envolveram o tríplex no Guarujá. Até as cadeiras do
Supremo sabem que promotores de Justiça e magistrados costumam conversar sobre
processos e investigações em andamento. Sabem que o conjunto de mensagens apenas
reitera que Moro e os procuradores trabalharam unidos para desmontar o maior
esquema corrupto da história. Sabem que nenhum inocente foi preso. Sabem que a
condenação imposta por Moro foi ratificada pelo Tribunal Regional Federal. Mas
a trupe de Gilmar faz de conta que o ex-presidente foi alvo de um complô de
dimensões siderais arquitetado por gente que só pensa em prender gente que
presta. O líder da bancada, claro, foi o protagonista do teatrão de quinta
categoria.
(Alguns leitores hão de
lembrar do velho Victor Mature em Sansão e Dalila. A força de
Sansão estava nos cabelos. Mas o intérprete se concentrava nas sobrancelhas.
Obedientes ao script, e orientados pelos sentimentos a traduzir —
paixão, fúria, angústia, altivez —, os tufos de pelos subiam e desciam,
moviam-se para os lados, juntavam-se no centro da testa ou estacionavam em
perfeita simetria. Se quisesse, Mature poderia ficar mudo do início ao
fim do filme. Falariam por ele as sobrancelhas. O ator Gilmar Mendes não
consegue dispensar a voz, o olhar e o suporte gestual quando se exibe no palco
do Supremo. Mas a performance não teria nada de mais se não
fosse o beiço. O estranho fruto produzido pelo abraço dos lábios é para o
superministro o que foram as sobrancelhas para Victor Mature.)
O beiço fez o possível para
convencer a plateia de que Gilmar nunca vira nada tão revoltante quanto o
comportamento dos responsáveis pela devassa do escândalo do Petrolão.
Projetou-se como o braço do pugilista que desfere um direto de direita, por
exemplo, quando o orador despejou o palavrório decorado dias antes: “Em algum
lugar mais sensível e talvez mais ortodoxo em matéria de Direito, é de se
dizer: essa gente estava se permitindo torturar pessoas”. O ministro não
identificou os torturados, nem esclareceu se Lula está entre eles. O beiço
garantia que Gilmar estava dominado pela perplexidade. A folha corrida informa
que ele só fica perplexo com sentenças condenatórias. Como demonstrou Ana Paula
Henkel num artigo publicado nesta Oeste, nenhuma absolvição é capaz de deixá-lo assombrado.
Entre outras obscenidades, o
ministro livrou da cadeia o doutor em estupro Roger Abdelmassih, o vendedor de
nuvens Eike Batista, oficiais graduados do bando de Sérgio Cabral, o
irrecuperável Anthony Garotinho, o amigo José Riva (recordista de bandalheiras
em Mato Grosso), o parceiro Silval Barbosa (ex-governador do Estado em que
Gilmar nasceu e ladrão compulsivo) e o compadre Jacob Barata (chefão da máfia
dos transportes no Rio). A fábrica de habeas corpus que
administra nos porões do Supremo funciona também em fins de semana e feriados.
Gilmar não se espanta com nada. O Brasil decente é que não para de espantar-se
com a desfaçatez do ministro que na metade deste ano se tornará o decano do
Supremo. Ele sempre sonhou com o posto que fez de Celso de Mello o Pavão de
Tatuí. Antes mesmo de chegar lá, o padroeiro dos culpados capricha na pose de
Maritaca de Diamantino.
Título e Texto: Augusto
Nunes, revista Oeste, 12-2-2021
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