Guilherme Fiuza
Nove da noite, rua Dias
Ferreira deserta. Para quem não conhece, Dias Ferreira é uma rua no Leblon com
vários restaurantes e alguns bares. Não dá para dizer que é um reduto da boemia
carioca. Seria uma espécie de tangente burguesa do Baixo Leblon, alguns passos
na diagonal em direção ao mar. Ali sim, um reduto boêmio. Para quem conhece, dá
no mesmo: é como se não conhecesse. Nada disso está mais lá.
Sim, tem uns bares e
restaurantes na área. Mas o espírito se mandou. Não vamos culpar o coronavírus.
Esses caretas do politicamente correto já vinham expulsando a poesia dali há um
bom tempo. Narcisismo e vaidade sempre andaram misturados com a boemia –
mistura eventualmente escandalosa. Mas quando havia talento, coração e poesia
na esquina, valia a pena. Aí foi chegando esse narcisismo primário, pueril,
avarento, dessas caras enfiadas em iPhone para teclar frases imortais de porta
de banheiro. O banheiro é a igreja de todos os bêbados, explicou Cazuza. Era.
Hoje é no máximo testemunha da mediocridade dos nerds.
Essa gente moralista metida a descolada não gosta de ninguém. Não gosta de encontro. Não gosta de liberdade. Seu prazer é o julgamento. Sua alegria é patrulhar o próximo. Claro que uma epidemia estaria destinada a ser a apoteose desses pobres coitados. E quando lhes deram de presente o tal “fique em casa” – o slogan mais reacionário da história – eles explodiram de felicidade. Finalmente era possível patrulhar qualquer um, em qualquer circunstância, com essa monstruosa ética de videogame: viver é botar vidas em risco.
O Leblon acabou. Nove da noite
na Dias Ferreira hoje dá para ouvir uma folha seca batendo no asfalto. Vários
camburões cheios de homens armados e guardas vagando com cassetetes maiores que
tacos de beisebol para cumprir o toque de recolher decretado pelo prefeito
Eduardo Paes, aquele que vivia posando de chapéu para dar uma de folião da
Portela. Só se for a folia dos fantasmas.
Os sambistas de verdade estão
por aí aglomerados nos ônibus todos os dias, porque isso não incomoda os
patrulheiros da quarentena vip a quem o prefeito obedece – e a quem os
enlatados nos ônibus servem. Todo mundo sabe que o vírus é noturno. Por isso o
tiranete metido a malandro da Portela transformou a noite carioca em cemitério.
A ex-capital da alegria e da liberdade virou uma cidade fantasma, acovardada
diante da sanha ditatorial de uma casta de idiotas que não seguem ciência
alguma e não salvam vida de ninguém.
Onde estão os libertários do
Rio de Janeiro para gritar contra a opressão? Para dizer que um povo digno não
confunde cuidados sanitários com ditadura? Para dizer que empurrar cidadãos
para dentro de casa como ratos sob pretexto de proteção à saúde é uma violência
mentirosa? Sumiram todos. Os cariocas indomáveis viraram, como os cidadãos de
diversas outras localidades, cachorrinhos de madame. E madame está avisando que
não vai largar a coleira.
Título e Texto: Guilherme Fiuza, Gazeta do Povo, 12-3-2021, 23h44
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