sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Um deputado é o alvo predileto do carcereiro fora da lei

Alexandre de Moraes inventou o perseguido político meio preso e meio solto

Augusto Nunes

É improvável que a Guerra das Malvinas tivesse acontecido se o general Leopoldo Galtieri, ditador da Argentina, não fosse tão parecido fisicamente com o ator George C. Scott, que interpretou no cinema a figura do general George Patton, que fez bonito na Segunda Guerra Mundial. Em 2 de abril de 1982, o tirano portenho exagerou no uísque, meteu na cabeça que era uma reencarnação do militar americano, decidiu que chegara a hora de retomar da Inglaterra o arquipélago que só o país vizinho chama de Malvinas e ordenou a invasão das ilhas que o resto do mundo chama de Falkland. A Marinha britânica topou o desafio, atravessou o oceano com um filho da rainha Elizabeth na nau capitânia e liquidou a pendência a tiros de canhão. Galtieri rendeu-se em 14 de junho, renunciou ao poder quatro dias depois e sumiu na poeira da História até morrer, em 2002. Confundir o intérprete com o personagem é um perigo. 

Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal, acha-se parecido com o ator Yul Brynner, que em 1960 fez bonito no papel do pistoleiro do bem Chris Adams em Sete Homens e um Destino. (O título original é ainda mais excitante: The Magnificent Seven. A tradução literal resultaria em algo como Os Sete Magníficos, Os Sete Gloriosos, Os Sete Soberbos ou Os Sete Grandiosos. Não é pouca coisa.) O protagonista, vivido por Brynner, é contratado por moradores de um lugarejo na fronteira com o México, atormentados pela opressão da quadrilha chefiada pelo brutal Calvera, e cumpre a missão de libertá-los da rotina de violências liderando outros seis anti-heróis. Pelo que anda fazendo, Moraes também parece enxergar no espelho não um sósia de Yul Brynner, mas um Chris Adams de toga.

Os acordes da lira do delírio que já há alguns anos ditam o ritmo da trilha sonora do STF se tornaram especialmente agudos quando Dias Toffoli, então presidente da Corte, promoveu Moraes a gerente do inverossímil inquérito das fake news. Impetuoso como um Leopoldo Galtieri à paisana, o ministro fez da maluquice conhecida como “inquérito do fim do mundo” a arma mais letal na guerra contra solertes inimigos do STF, das instituições e da democracia. Na fase de aquecimento, o juiz durão pendurou no peito uma imaginária estrela de xerife para censurar revistas digitais, intimar meia dúzia de possíveis admiradores de ditaduras e colocar na alça de mira sites infectados por ideias caras ao presidente Jair Bolsonaro. No passo seguinte, Moraes procurou inibir com arbitrárias temporadas na cadeia quem usa a internet para criticar o Supremo. No começo deste ano, acumulando os papéis de vítima, investigador, acusador e juiz de todos os processos que tratem de fake news, a versão nativa de Chris Adams enfim encontrou seu Calvera na figura de Daniel Silveira, eleito deputado federal em 2018 pelo PSL do Rio de Janeiro.

O mais imbecil dos alunos da pior faculdade de Direito do Brasil sabe recitá-la em latim, vertê-la para o português e apreender o significado da frase que resume um irrevogável mandamento jurídico: Nullum crimen, nulla poena sine praevia lege. Perfeito: “Não há crime, nem pena sem lei anterior que o defina”. O gordo currículo de Alexandre de Moraes avisa que o futuro jurista deve ter declamado esse latinório dois minutos depois de aprender a falar. O autor de uma pilha de livros sobre temas associados ao Direito Constitucional está cansado de saber que um “mandado de prisão em flagrante”, como o que expediu para engaiolar Silveira, tem o mesmo valor de uma cédula de R$ 4. Sabe que o instituto da imunidade parlamentar impede que um integrante do Congresso seja punido por palavras que pronunciou ou escreveu, opiniões que emitiu ou votos que efetivaram alguma opção. Sabe que a proibição de ser juiz em casos em que se é vítima é um dos pilares do Poder Judiciário. Mas Moraes também sabe que, no Brasil destes tempos estranhos, ministros do Supremo são tão inimputáveis quanto os bebês de colo, os índios de tribos isoladas ou os Napoleões de hospício. 

Aos olhos das autoridades americanas, o jornalista apenas exerceu o direito à liberdade de expressão

Disposto a tudo para mostrar quem manda no País do Carnaval, o ministro resolveu que a melhor maneira de manter a democracia intocada era mandar às favas o Estado Democrático de Direito. Inventou o flagrante perpétuo, demitiu por justa causa a imunidade parlamentar, exonerou princípios jurídicos seculares, atropelou cláusulas pétreas da Constituição e, com a insolência de um fora da lei de nascença, deformou o Código Penal e o Código de Processo Penal com interpretações paridas às pressas. Ao concluir as manobras que resultaram no encarceramento de Daniel Silveira, Moraes havia ressuscitado a figura do preso político, incompatível com o regime que simultaneamente louva e espanca. Óscar Arias, ex-presidente da Costa Rica contemplado com o Prêmio Nobel da Paz, ensina que “não existem presos políticos nas democracias. Se houver algum, o país não é democrático”. Na América Latina, só há presos políticos em Cuba, na Venezuela, na Nicarágua e, graças ao STF, no Brasil.

No momento, permanecem ilegalmente na cadeia o ex-deputado Roberto Jefferson e o caminhoneiro Zé Trovão. O jornalista Allan dos Santos teria engordado a lista se não estivesse vivendo nos Estados Unidos. Para abrandar a frustração, o carcereiro compulsivo transformou Allan em foragido, determinou sua inclusão nos cartazes da Interpol e solicitou à Justiça americana que o extraditasse. Só então descobriu que o tratado subscrito pelo Brasil e pelos Estados Unidos restringe a extradição a autores de atos considerados criminosos por ambos os países. Aos olhos das autoridades americanas, o jornalista apenas exerceu o direito à liberdade de expressão. Se o caso chegasse à Corte Suprema dos EUA, Alexandre de Moraes é que viraria réu por abuso de autoridade. E acabaria enquadrado nos artigos que tratam de juízes que perseguem e punem — sem a indispensável participação do Ministério Público, sem o acesso dos advogados aos autos, sem o devido processo legal, sem o direito de ampla defesa — quem ousar dizer ou escrever coisas que pareçam ofensivas a algum titular do Timão da Toga ou à equipe inteira.

No começo desta semana, ao decretar o fim da “prisão preventiva” de Daniel Silveira, o ministro deixou claro que é ele o seu perseguido predileto. Se fosse assaltado por um surto de humildade, reproduziria a grande imagem de Nelson Rodrigues: sentado no meio-fio, estaria chorando lágrimas de esguicho e pedindo perdão aos transeuntes. Se não fosse um prepotente de berço, ele simplesmente determinaria a soltura do deputado — e ponto final. Em vez disso, mostrou que nunca perde a chance de afrontar a sensatez, zombar dos genuínos juristas e esticar as filas que se estenderão, no próximo Carnaval, diante das barracas abarrotadas de máscaras que simularão a carranca do campeão de impopularidade. “Os atos criminosos cometidos pelo réu são gravíssimos”, reiterou Moraes, “e ainda serão julgados pelo plenário do STF.”

Tais atos, fantasiou, “não só atingiram a honorabilidade e constituíram ameaça ilegal à segurança dos ministros do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, como se revestiram de claro intuito de tentar impedir o exercício da judicatura, notadamente a independência do Poder Judiciário e a manutenção do Estado Democrático de Direito, em claro descompasso com o postulado da liberdade de expressão, dado que o denunciado propagou a adoção de medidas antidemocráticas contra a CORTE, insistiu em discurso de ódio e a favor do AI-5 e de medidas antidemocráticas”. O falatório pernóstico não resiste a três ou quatro perguntas em língua de gente. Por exemplo: se os exageros verbais de Silveira foram “crimes gravíssimos”, em qual categoria figuram as medonhas execuções perpetradas por bandidos que o Supremo vive soltando? Onde o ministro enxergou a iminente interrupção do funcionamento do Judiciário? Em que trecho de qual código está escrito que ameaças não consumadas dão cadeia? Se sentir saudade do AI-5 é caso de polícia, que castigos merecem os que amam a ditadura do proletariado? 

A continuação da conversa fiada ressalvou que a soltura chegaria escoltada por duas “medidas cautelares”, e com isso Moraes conseguiu inventar uma brasileiríssima cretinice: o meio solto e meio preso. O deputado poderá sair de casa, tomar café no bar da esquina, engraxar os sapatos, até mesmo bronzear-se na praia, tudo isso liberado da tornozeleira eletrônica. É provável que logo esteja percorrendo os corredores da Câmara (que endossou sua prisão por 364 votos contra 130) e concedendo entrevistas. Mas não poderá fazer tudo o que é permitido aos demais beneficiários do direito de ir e vir. A primeira restrição o proíbe de “ter qualquer forma de acesso ou contato” com outros investigados no inquérito do fim do mundo, a menos que também sejam deputados federais. A segunda medida cautelar é um desfile de minúcias amalucadas. O meio preso e meio solto está proibido de “frequentar toda e qualquer rede social, em nome próprio ou ainda por intermédio de sua assessoria de imprensa ou de comunicação e de qualquer outra pessoa, física ou jurídica, que fale ou se expresse e se comunique (mesmo com o uso de símbolos, sinais e fotografias), em seu nome ou indiretamente, de modo a dar a entender esteja falando em seu nome ou com o seu conhecimento, mesmo tácito”.

Proibir o acesso de um deputado federal a redes sociais equivale a condená-lo à derrota na tentativa de reeleger-se. É precisamente esse o objetivo do advogado formado pela Faculdade do Largo de São Francisco que foi promotor público, procurador-geral do Estado, supersecretário na administração do prefeito Gilberto Kassab, secretário de Justiça e depois da Segurança Pública em dois mandatos do governador Geraldo Alckmin e já parecia a caminho da precoce aposentadoria política quando o destino se somou à sorte e à esperteza para colocá-lo na antessala de um gabinete no Supremo Tribunal Federal — o sonho perseguido desde o berçário. Ele era secretário de Segurança do governo paulista quando comandou com a discrição necessária a localização e captura do hacker que invadira o celular de Marcela Temer, mulher de Michel Temer. A gentileza seria retribuída depois que o impeachment da presidente Dilma Rousseff instalou no Palácio do Planalto o marido agradecido. Promovido a ministro da Justiça, acabou transferido para o outro lado da Praça dos Três Poderes graças à vaga aberta pela morte de Teori Zavaschi.

Para surpresa do doutor em Direito Constitucional Alexandre de Moraes, o político Alexandre de Moraes topou virar juiz do STF antes que Temer terminasse de formular o convite. Na tese que apresentou ao concluir o curso de doutorado na Universidade de São Paulo, o atual ministro sustentou que deveria ser abolida a indicação para o Pretório Excelso de quem ocupa um cargo de confiança do presidente da República. “A vaga na Corte não se presta a demonstrações de gratidão política, nem pode servir de prêmio pessoal para demonstrações de fidelidade político-partidária”, argumentou o premiado pela fidelidade a Michel Temer. Se o Moraes de toga tivesse compromisso com o que escreveu no século passado o Moraes de terno, não teria concordado com a transformação do STF num simulacro de vara criminal que julga questões sem quaisquer vestígios de parentesco com as reais atribuições da Corte. No livro Constituição do Brasil Interpretada, o futuro carcereiro supremo afirmou que o STF deveria ser “um tribunal exclusivamente constitucional, deixando de atuar como última instância em causas variadas”. Se ainda pensasse como o homônimo que existiu no século 20, não estaria piorando a imagem da Corte com o caso Daniel Silveira. (E tampouco teria determinado, como fez há dias, o afastamento da presidência nacional do PTB do ex-deputado federal Roberto Jefferson, outro hóspede involuntário do seu cativeiro particular.)

Nosso Chris Adams de chanchada cavalga rumo ao destino em companhia de cinco homens (Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin) e uma mulher (Cármen Lúcia, que se reveza com Rosa Weber). Pelo desempenho do elenco, pode estar em gestação um clássico do faroeste à brasileira, que sempre termina com o triunfo dos bandidos. No filme de 1960, a vitória do personagem interpretado por Yul Brynner livra os habitantes indefesos da submissão a uma quadrilha. Na versão protagonizada pelo Chris Adams de toga, graças às proezas dos sete cavaleiros do Apocalipse brasileiro, o bandido Calvera pode virar xerife do vilarejo.

Título e Texto: Augusto Nunes, revista OESTE, 86, 12-11-2021

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Um comentário:

  1. Meu Deus, estou pasma! Não sabia que a desgraça do Diabo usava gravata vermelha. Deveria usar junto com a capa de urubu, um chapéu com chifres para esconder a falta dos cabelos e, claro, uma máscara na fuça para despistar a 'maquiavelidade' da sua cara de debiloide.
    Carina Bratt
    Ca
    São Paulo, Capital

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