De todas as palavras disponíveis no mercado, nenhuma foi expropriada de forma tão radical para uso político quanto a soma do substantivo “notícia” com o adjetivo “falsa”
J. R. Guzzo
As tiranias, em todas as épocas, sempre capricham na tarefa de criar o seu próprio dicionário. Montam uma coleção de palavras e de combinações de palavras que têm de significar, obrigatoriamente, só aquilo que interessa aos donos do poder; é como se tivessem tirado uma patente, com direitos autorais, sobre porções específicas da linguagem. A partir daí, as palavras selecionadas não podem ser utilizadas por quem está fora do grupo — adquirem, ao mesmo tempo, o significado político estabelecido por seus proprietários e não podem mais voltar ao seu sentido natural.
De todas as palavras
disponíveis hoje no mercado, possivelmente nenhuma foi expropriada de forma tão
radical para uso político quanto a soma do substantivo “notícia” com o adjetivo
“falsa”. É obrigatório falar isso em inglês, naturalmente — fake news. Ao que
parece, só em inglês elas têm significado legal; o Supremo Tribunal Federal,
onde o uso do português, teoricamente, deveria ser obrigatório (trata-se do
idioma oficial do Brasil, segundo a Constituição), só fala na forma inglesa.
Tem, até mesmo, um monumental inquérito sobre fake news, que mete gente na
cadeia e paira como uma grave ameaça, 24 horas por dia, sobre a cabeça do
presidente da República. O mundo político, de um extremo a outro, fala em fake
news como se estivesse operando em Washington. A mídia, então, não pensa em
outra coisa. Em suma: virou ideia fixa, e tem tudo para substituir, a partir de
agora, a obsessão com a CPI da Covid.
A pretexto de salvar a humanidade dos perigos da má informação, o que
eles fazem é censurar o pensamento livre
Normalmente seria apenas mais uma bobagem, entre tantas outras que são produzidas, em compasso de linha de montagem, pelo STF, pelos políticos e pela imprensa deste país. Mas não é assim. Fake news, acima de qualquer outra coisa, é hoje uma arma contra a liberdade; na verdade, a sua manipulação permanente, articulada e agressiva é possivelmente o principal recurso usado no momento pelos inimigos do direito de expressão para impor a sua visão de mundo a todos os demais. A pretexto de defender a virtude e de salvar a humanidade dos perigos da má informação, o que eles fazem, na prática e todos os dias, é censurar o pensamento livre. Fake news, na vida real, não quer dizer notícia falsa. É, isso sim, tudo aquilo com o que a polícia das ideias, hoje presente em todos os aspectos da vida em sociedade, não concorda — ou não quer que seja publicado. O significado da expressão não é mais o original; foi sequestrado por facções políticas e ideológicas para reprimir qualquer ponto de vista que não seja o seu.
A presente campanha contra os
“atos antidemocráticos”, comandada a partir de um inquérito grosseiramente
ilegal do Supremo Tribunal Federal e apoiada com paixão pela mídia brasileira,
se baseia exatamente nessa contrafação — os “antidemocratas”, segundo dizem
ambos a cada cinco minutos, estariam se utilizando de “fake news” para atacar a
democracia, as “instituições” e o Estado de direito. É mentira. A noção de
“notícias falsas” é, simplesmente, o mais ativo instrumento de ação política
que a esquerda totalitária e os seus auxiliares, voluntários ou inconscientes,
estão usando para proibir a livre troca de ideias no Brasil atual.
Notícia falsa, no mundo das
realidades, é noticiar uma queda de avião que não aconteceu, publicar que a
eleição foi ganha pelo candidato que perdeu, ou dizer que o jogo de 2 a 0
acabou em 1 a 1. Mas não é disso que a esquerda ou o STF estão falando quando
acusam alguém do delito de “fake news” — na verdade, os vigilantes da
honestidade no noticiário e no debate político gritam que é falsa toda notícia
que vai contra os seus interesses. É “falsa”, assim, qualquer informação, por
mais bem fundamentada que seja, dando conta de uma redução das queimadas na
Amazônia — e tudo o mais que não se encaixe direito naquilo que consideram verdade
definitiva. Mais: denunciam como “fake news”, em seus tribunais, afirmações que
são pura opinião, ou ponto de vista. O amaldiçoado tratamento da covid com
cloroquina, por exemplo; qualquer afirmação positiva sobre o assunto, ou mesmo
neutra, é tida como “fake news” em último estágio — o sujeito pode até acabar
indiciado criminalmente numa CPI por causa disso.
Por que não deixar as pessoas livres para noticiar ou pensar o que lhes
parece melhor?
Os apóstolos do combate às
fake news, bem como todos os que se apresentam ao público no papel de fiscais
da democracia, querem punir a posição divergente, isto sim — o resto é pura
hipocrisia. Quem teria o direito de decidir o que é falso e o que é verdadeiro
neste país e neste mundo? A imprensa e as suas patrulhas de busca e captura de
fake news? A noção é simplesmente absurda. O único juiz para essas questões é o
público: é ele, finalmente, que vai ou não vai acreditar no que sai publicado
e, em cima disso, compensar ou punir, com a sua credibilidade ou seu descrédito,
os que divulgam as notícias. Foi publicado com grande destaque, poucos dias
antes da rodada decisiva das eleições presidenciais de 2018, que Jair Bolsonaro
iria perder de “todos” os candidatos, quaisquer que fossem, no segundo turno da
votação. É notícia falsa — ou, simplesmente, é pesquisa malfeita? Da mesma
forma: por que é um ato “antidemocrático” o cidadão ser a favor do AI-5 e do
regime militar? Por que ele não teria esse direito? E ser a favor do regime de
Cuba — pode? A discussão, obviamente, não fecha. Por que, então, não deixar as
pessoas em liberdade para noticiar ou pensar o que lhes parece melhor?
A observação mais repetida que
se faz a respeito é dizer que o direito à livre expressão não pode ser
“absoluto”, pois outros direitos dos cidadãos também têm de ser respeitados. E
quem diz que a liberdade de expressão é absoluta no Brasil? É integralmente
falso: a lei brasileira estabelece, da maneira mais clara possível, que todo
indivíduo ou veículo de comunicação é 100% responsável pelo que publica, dos
pontos de vista penal, cível ou econômico. Para começar, está aberto 24 horas
por dia à autoridade pública ou a qualquer cidadão maior de 18 anos o direito
de processar, criminalmente, ou na área cível, os autores de cada afirmação que
for publicada na mídia ou nas redes sociais. Numa ação penal, podem ser
processados, julgados e condenados pelos crimes de calúnia, injúria e
difamação. Numa ação por danos morais, podem ser condenados (e são,
frequentemente) a pagar multas em dinheiro e a se retratar do que disseram, no
mesmo espaço e com a mesma intensidade utilizados nas suas afirmações
originais.
A sociedade brasileira não tem
de ser protegida de fake news, nem de “desinformação”, e nem de outros crimes
que não existem na lei. Tem de ser protegida, isso sim, dos verdadeiros
inimigos da liberdade.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista OESTE, nº 84, 29-10-2021
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