A Controladoria de Pilantras e Impostores resume verdades que Renan e seus parceiros tentam esconder
Augusto Nunes
No mesmo dia em que foram escalados titulares e suplentes da Comissão Parlamentar de Inquérito instaurada no Senado para investigar delinquências ocorridas durante a pandemia de covid-19, a direção de Oeste entendeu que aquilo merecia atenções especiais. A lista de convocados parecia chamada oral em pátio de cadeia. A surpresa virou espanto com a escolha do relator: Renan Calheiros, um notório prontuário ainda em liberdade. Sim, no faroeste à brasileira produzido pela Era PT é o vilão que persegue o xerife. Mas incumbir Renan de investigar patifarias é algo como instalar Marcola, o chefão do PCC, no Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Uma CPI desse calibre exigiu a montagem na redação desta revista de uma Controladoria de Pilantras e Impostores, formada por jornalistas que nunca tratam a verdade a socos e pontapés. Assim nasceu a CPI da CPI. A orientação repassada aos investigadores limitou-se a dois lembretes: 1) ver as coisas como as coisas são; 2) contar o caso como o caso foi. Honrado com o cargo de relator, tive a missão facilitada pelo esforço dos engajados na força-tarefa e, sobretudo, por constatações feitas por J.R. Guzzo e Silvio Navarro. O resumo das conclusões traduz o bom trabalho da CPI da CPI. Aos fatos.
Renan Calheiros, montagem com foto de Edilson Rodrigues/Agência Senado |
A origem
Os inimigos de Jair Bolsonaro
jamais aceitaram o resultado das eleições de 2018. Assim que a apuração dos
votos terminou, os devotos do derrotado tentaram impedir a posse do vitorioso,
com o pretexto de que teria feito mau uso das redes sociais durante a campanha.
De lá para cá, o governo federal não conheceu um só minuto de sossego. Mesmo
nos fins de semana, feriados e dias santos, continua a luta da tropa formada
pela esquerda parlamentar, por políticos que só têm compromissos com os
próprios interesses, por figurões do Judiciário que enxergam um imperador
quando contemplam o espelho e por uma imprensa que vê na derrubada do
presidente da República a razão de sua existência. Os conspiradores fazem o
diabo para impedir que o governo funcione. A mais recente ofensiva ficou por
conta da CPI instaurada pelo Senado, por ordem do Supremo Tribunal Federal,
para provar que o vírus chinês, no Brasil, não matou ninguém. Os mais de 600
mil mortos foram vítimas do genocídio praticado por Jair Bolsonaro.
O G7
Os partidos que deveriam defender o governo conseguiram quatro vagas no time titular. Apenas Marcos Rogério, de Rondônia, soube enfrentar com competência a ferocidade dos sete oposicionistas, escolhidos entre o que há de pior no Senado. Já na sessão inaugural, o relator Renan Calheiros, de Alagoas, o presidente Omar Aziz, do Amazonas, e seu vice Randolfe Rodrigues, do Amapá, deixaram claro que o parecer estava pronto e as conclusões estavam concluídas. Mas ficariam seis meses em campo para que a torcida brasileira conhecesse melhor os integrantes do que ficaria conhecido como G7. Má ideia. Quem ainda ignorava o caso ficou sabendo que Aziz foi anexado à fila de investigados no Supremo Tribunal Federal por ter tripulado um desvio de verbas destinadas à saúde que somaram R$ 260 milhões. Envolvidos no mesmo caso de polícia, foram presos a mulher e dois irmãos do agora conselheiro. Em julho, Arthur Virgílio Neto afirmou que Aziz só escapou de uma CPI da Pedofilia instaurada pela Assembleia Legislativa graças à interferência do ex-senador e ex-prefeito de Manaus. “A pedido de sua mãe, respeitável e querida senhora, livrei-o de uma dura condenação penal e da desmoralização completa”, contou Virgílio.
Foto: Edilson Salgueiro/Agência Senado |
O Brasil que pensa e presta foi apresentado aos chiliques e faniquitos de Randolfe, uma voz de castrato à procura de ministros do STF interessados em aumentar a confusão. A plateia entendeu também que as semelhanças entre o relator e o presidente não apareceram agora. Faz tempo que os dois são casos de polícia. Ganharam notoriedade ou voltaram ao palco outros integrantes do G7. (Nada a ver com o grupo das equipes que lideram o campeonato brasileiro de futebol. Esse G é de Gangue, com maiúscula.) O senador Otto Alencar, da Bahia, é médico formado, mas não veste um jaleco há muitas décadas. Para mostrar que ainda lembra que o antibiótico chegou depois da sulfa, resolveu animar o auditório com pegadinhas. Por pouco não perguntou a alguma Vossa Senhoria se sabia a diferença entre um vírus e um ovário. O senador Humberto Costa, de Pernambuco, mostrou-se tão preparado para socorrer algum doente quanto Otto Alencar. Mas meio mundo lembrou que o mais aflitivo soprano do PT foi aquele ministro da Saúde que se meteu no escândalo dos sanguessugas e acabou ganhando do Departamento de Propinas da Odebrecht o codinome Drácula.
Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado |
O covidão
O G do G7 foi escancarado já na largada pela demarcação das fronteiras do território a ser devassado pela CPI. Na linha de tiro estavam Bolsonaro e todos os que se moveram desde março de 2020 nas cercanias do presidente da República. Ficaram fora os 27 governadores e mais de 5.500 prefeitos do Brasil. O alto comando da CPI fez de conta que estava na China, combatendo o inimigo no berço, quando o Supremo Tribunal Federal resolveu que caberia aos administradores estaduais e municipais a montagem e a execução da estratégia para a guerra contra a pandemia. Cuidariam da missão como bem entendessem e com plena autonomia. Nenhuma decisão tomada por governadores e prefeitos poderia ser modificada, muito menos vetada, pelo governo federal.
Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado |
Cabia ao Planalto arranjar a
verba e pagar auxílios de emergência a quem perdeu emprego e renda por causa da
repressão ao trabalho, à produção e à atividade econômica imposta pelas
“autoridades locais”. Previsivelmente, juntaram-se aos estragos feitos pelo
coronavírus surtos de incompetência, desperdício de bilhões de reais e uma
ladroagem explícita de dimensões amazônicas. A decretação do estado de
calamidade pública é uma gazua que, graças à dispensa de licitações e
concorrências públicas, permite queimar e embolsar dinheiro até com a polícia
por perto. As “autoridades locais” receberam ao longo do último ano, em verbas
federais, cerca de R$ 60 bilhões para cuidar da epidemia. Cuidaram do que
acharam mais urgente. Aumentar o patrimônio da família, por exemplo.
Entre março de 2020 e julho de
2021, registraram-se bandalheiras bilionárias em todos os Estados. Provas
robustas acumulam-se nos porões de centenas de prefeituras. Ainda assim, a CPI
pilotada por sete senadores que viravam oito, nove ou dez quando se tornava
necessária a solidariedade de suplentes negou-se a enxergar a portentosa onda
de saques. Wilson Witzel conseguiu a proeza de ser despejado do governo do Rio
antes de chegar à metade do governo. Pousou na CPI como “convidado”, berrou um
falatório de inocente injustiçado, combinou com os anfitriões uma “sessão
secreta” e foi dispensado de explicações sobre o caso dos hospitais de campanha
que foram pagos sem terem existido. Intimados por uma CPI de verdade, o
prefeito de Araraquara, Edinho Silva, talvez reencontre na Assembleia
Legislativa do Rio Grande do Norte seu “irmão de alma” Carlos Gabas, que por
decisão do Consórcio Nordeste chefiou o combate à pandemia e o ataque às verbas
federais. Fraternalmente, foram poupados pelos detetives de picadeiro que até o
começo desta semana agiram em Brasília. Será mais difícil driblar a CPI
potiguar, que sabe como tratar fabricantes de álibis mambembes.
O relator
Em 2007, ao tropeçar em outra
pilha de patifarias, Renan Calheiros era presidente do Senado. Encorajado pelo
acervo de dossiês que coleciona e, segundo a lenda, guardam um colosso de
deslizes protagonizados por dezenas de políticos, propôs um acordo aos colegas:
toparia renunciar se o mandato não fosse cassado. Escapou por pouco da
aposentadoria precoce, atestam trechos de um bate-boca com o cearense Tasso
Jereissati ocorrido quando a degola ainda lhe ameaçava o pescoço:
— Renan, não aponte esse
dedo sujo pra cima de mim! Estou cansado de suas ameaças.
— Esse dedo sujo infelizmente é o de Vossa Excelência. São os dedos dos
jatinhos que o Senado pagou.
— Cangaceiro, cangaceiro de terceira categoria!
— Seu merda… — rebateu Renan. Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado
Nesta semana, lá estava a
assinatura de Tasso, representante do PSDB na CPI, endossando o palavrório que
ergue um monumento à pilantragem e à impostura. O senador cearense não pode ter
esquecido o que Renan fez antes daquele duelo verbal em 2007 — nem ignora o que
andou fazendo nos últimos 15 anos. Mas também Tasso parece achar que o Grande
Satã a exorcizar é Jair Bolsonaro, e que essa tarefa patriótica justifica as
mais repulsivas tessituras. Alianças do gênero exigem prodigiosas acrobacias.
Deve-se esquecer, por exemplo, que a CPI passou ao largo dos governadores
larápios para evitar que a relação de depoentes incluísse Renan Filho,
candidato ao Senado, ou Helder Barbalho (filho do suplente Jader Barbalho), em
busca de um segundo mandato no Pará.
Tentativas de intimidação mais
de uma vez provocaram, em vez de temor, gargalhadas nacionais
Dez inquéritos em tramitação
no Supremo Tribunal Federal atestam que Renan ainda é o recordista na
modalidade bandidagem com direito a foro privilegiado. Outros três correm em
sigilo ou sob segredo de Justiça. A marca seria ainda mais impressionante se o
reincidente compulsivo não tivesse conseguido arquivar dez inquéritos por falta
de provas, por decurso de prazo ou por amizade incestuosa entre réu e
juiz. “É falso que sejam 17 os inquéritos em tramitação no Supremo
Tribunal Federal que envolvem Renan Calheiros. São nove”, comunicou há poucos
meses uma agência de checagem. A subserviência da imprensa velha e suas
agências natimortas induziu Renan a dar um passo bem maior do que a perna. O
relator pediu a quebra do sigilo bancário da rádio Jovem Pan, de uma produtora
de documentários e de alguns sites conservadores, sob a acusação de que
disseminavam fake news sobre a pandemia. Causou estranheza a
abrangência da devassa nas contas: Renan queria que fosse examinada a
movimentação financeira a partir de 2018, quando ninguém podia prever a
aparição do vírus chinês. A reação dos próprios aliados aconselhou-o a
transferir para Drácula a ideia de jerico e a conformar-se com os agrados do
jornalismo euforicamente submisso.
Tentativas de intimidação mais
de uma vez provocaram, em vez de temor, gargalhadas nacionais. Foi assim ao
comparar o Brasil de Bolsonaro à Alemanha de Hitler. Ao dissertar sobre Hermann
Goering, divertiu a plateia ao pronunciar em cangacês castiço o nome do temido
nazista: “Góringue”. Durante o depoimento do empresário Luciano Hang, resolveu
emparedar o depoente com a interpelação fulminante: perguntou-lhe se também
lidava com “creptomoeda” e “biticóio”. Hang replicou com o jab na
testa: “Nem sei o que é isso”. Mas nenhuma ousadia resultou tão desastrosa
quanto a ideia de transformar Bolsonaro em “genocida”. Na véspera da
apresentação do relatório, Renan foi alertado por advogados: seria mais fácil
para o relator provar que é um homem honrado do que convencer qualquer juiz da
pertinência da acusação. A retirada da sandice que julgava suficientemente
grave para garantir o impeachment transformou o senador
alagoano no disseminador da mais desprezível fake news registrada
desde o começo da pandemia.
Ansioso por safar-se da
desmoralização, Renan piorou as coisas. Colocou na cabeça — e no relatório —
que Bolsonaro deveria pelo menos ser punido por “epidemia com resultado de
morte”. O Código Penal informa que só se enquadra nesse crime quem causa um
surto de bom tamanho “mediante a propagação de germes patogênicos”. Teria
Bolsonaro capturado num laboratório chinês um bando de vírus responsáveis pelo
maior desastre sanitário dos últimos 100 anos, e saído pelo mundo contaminando
amigos e inimigos?
Ouça o conselho amparado nas
conclusões da CPI da CPI, senador: agora sossegue. Melhor curtir enquanto é
tempo a liberdade inexplicável. E leve junto Omar Aziz. Os dois, como o resto
da turma, devem desculpas aos homens e mulheres agredidos e afrontados numa CPI
que, como constatou J.R. Guzzo, nunca se dispôs a apurar com honestidade erros
eventualmente ocorridos no combate à pandemia. O G7 não investigou coisa
alguma. O que fez foi ocultar crimes. Comportou-se nos interrogatórios como uma
delegacia policial de ditadura; ofendeu, perseguiu e pisoteou os direitos das
testemunhas como cidadãos e como seres humanos. A seita dos insolentes e a
tropa de choque arrogante só acusaram, como se os interrogados fossem
criminosos comprovados e já estivessem condenados antes que pudessem abrir a
boca. A CPI da CPI concluiu que, ao fim dos interrogatórios, os inquisidores é
que deveriam ouvir dos depoentes a merecidíssima voz de prisão.
Título e Texto: Augusto
Nunes, revista OESTE, nº 84, 29-10-2021
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