Moraes proibiu que qualquer brasileiro diga nas redes sociais uma única palavra sobre as possíveis ligações que existem entre Lula, o PT, o PCC e o assassinato do prefeito Celso Daniel
J. R. Guzzo
Não
basta que uma eleição seja honesta. Ela tem de parecer honesta, como a mulher
de Cesar
Não há nisso tudo nenhum mistério ou problema incompreensível de física nuclear. Vota-se, no Brasil, com um sistema eleitoral que essencialmente só é utilizado em dois outros países, Butão e Bangladesh — e não se admitiu até agora a mínima sugestão para dar mais segurança ao processo. Encerrada a votação, um funcionário do Estado que preside o “tribunal eleitoral”, uma aberração que não existe em nenhuma democracia séria do mundo, vai dizer quem ganhou — sem que haja, por parte de ninguém, a possibilidade material de verificar se a apuração dos votos corresponde à vontade que a maioria dos eleitores registrou nas urnas eletrônicas. Esse funcionário é o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, com o apoio fechado de oito entre os seus dez colegas de função pública — é ele quem vai chefiar o TSE nessas eleições. Acontece, muito simplesmente, que o ministro Moraes dá a entender todos os dias, pelas decisões oficiais que está tomando, que não é imparcial. Ao contrário: age como inimigo aberto de um dos candidatos, o presidente da República, e como militante também aberto do seu adversário. Não é uma questão de achar ou não achar isso ou aquilo. É o que está nos despachos do ministro. Como evitar, assim, que cresça dia a dia a desconfiança geral na honestidade dessas eleições? Não basta que uma eleição seja honesta. Ela tem de parecer honesta, como a mulher de Cesar. Essa aí não está parecendo, nem um pouco.
Os fatos são os fatos. Em seu último conjunto de decisões, Moraes proibiu que qualquer dos 200 milhões de brasileiros diga nas redes sociais uma única palavra sobre as possíveis ligações que existem entre Lula, o PT, a organização criminosa PCC e o assassinato do prefeito Celso Daniel, de Santo André — atendendo a uma exigência feita pelos próprios Lula e PT. É um ato inédito, em sua ambição, seu rancor e sua violência, contra a liberdade constitucional de expressão garantida por escrito na principal lei do país. A informação sobre essas ligações é fato público: foi impressa e divulgada digitalmente pela revista Veja, reproduzida por outros veículos de imprensa e debatida no ambiente político. Faz parte, aliás, de um documento oficial — o depoimento de confissão, homologado pela justiça, de Marcos Valério, o intermediário na distribuição de propinas no primeiro governo Lula. Que lei permite ao ministro impedir que alguém mencione um fato exposto ao conhecimento geral pela mídia? O que Moraes decidiu na prática é que ninguém pode dizer a seguinte frase no Twitter, no Facebook e em outras redes sociais: “Eu li na Veja que o Marcos Valério falou à justiça sobre ligações entre Lula, o PT, o PCC e o assassinato do prefeito Celso Daniel”. Como assim, “não pode”? As informações já foram publicadas na mídia, e a mídia, pelo menos até agora, não está proibida de dizer nada, e nem obrigada a dizer o que quer que seja; a divulgação das palavras de Marcos Valério, assim, foi perfeitamente legal. Como, então, o sujeito não pode repetir fatos que foram expostos legalmente? A imprensa pode falar e o cidadão não pode? É isso o que o ministro resolveu?
Moraes mandou apagar das redes
as menções feitas sobre o relacionamento entre Lula, PT e PCC; afirmou que são
“mentiras”. Quem disse que são “mentiras”? Não foi a justiça. O caso Valério
continua em aberto; como o ministro pode dizer, antes da decisão final do
processo, que as declarações do intermediário do “Mensalão” são mentirosas?
Quem está dizendo isso é Lula e o PT, só eles, para não terem de responder
perguntas sobre o assunto durante a campanha eleitoral — eles e, agora,
Alexandre de Moraes. Onde está, nesse caso, a imparcialidade do magistrado que
vai dizer, em outubro, quem ganhou a eleição? O que ele fez, neste episódio,
foi interferir diretamente na campanha, tomando o partido de um dos candidatos.
É exatamente a mesma parcialidade que Moraes mostrou ao dar “dois dias” para o
presidente Jair Bolsonaro “explicar” a acusação, feita por partidos de
esquerda, de que ele incentiva o chamado ”discurso do ódio” na campanha
eleitoral. De qual ato de “ódio”, objetivamente, se acusa Bolsonaro? Os
acusadores não citam nenhum. Dizem apenas que seus discursos “configuram-se em
estímulos psicológicos que vão construindo no imaginário dos seus apoiadores e
seguidores a desumanização dos opositores”. É isso, promover o ódio? Moraes
afirmou que essas alegações são “relevantíssimas”. Não disse uma sílaba, porém,
sobre o filme em que Bolsonaro aparece assassinado numa passeata de
motocicletas, jogado no chão, com sangue e uma faixa verde-amarela de presidente.
Isso, para os árbitros supremos das eleições, não é ódio — nem o vídeo em que
uma turma aparece jogando futebol com a cabeça do presidente da República.
“É um claro abuso de poder,
uma censura inaceitável e um facciosismo incontestável”, diz o jurista Adilson
Dallari sobre a proibição de se falar nas redes sociais a respeito das ligações
de Lula e PT com o PCC. “O despacho deveria terminar com a expressão: ‘PT
saudações.’” O advogado e ex-desembargador Ivan Sartori diz que a decisão de
Moraes é censura prévia. “O artigo 220 da Constituição estabelece que a
manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer
forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição”, diz ele. “A
retirada prévia implica em censura.” O jurista Dircêo Torrecillas acha estranho
que Moraes tenha decidido que as afirmações sobre Lula, PT, PCC e Celso Daniel
sejam falsas antes da apuração do caso. “As eventuais punições por crimes de
calúnia, injúria ou difamação só podem vir depois que forem concluídas as
investigações”, diz ele. O professor Ives Gandra Martins diz que a história em
torno de Celso Daniel é um boato, já que não há provas sobre o que realmente
aconteceu — mas na sua opinião boato se desmente, e não se transforma em causa
levada à suprema corte do país.
Como
Moraes pode ser imparcial e, ao mesmo tempo, receber para uma reunião íntima, a
portas fechadas, os chefes dos partidos de esquerda?
Tudo o que o ministro
Alexandre de Moraes decide vai na mesma direção. Ele acaba de prorrogar por mais
90 dias o inquérito ilegal, inédito e perpétuo que conduz desde 2019 — isso
mesmo, 2019, ou três anos — para investigar “fake news”. Não há um único
fato que possa ser apresentado para justificar a continuação desse inquérito
que não acaba mais, e que não tem similar na história da justiça brasileira. Um
ministro do STF não tem direito de abrir e chefiar um inquérito policial sobre
causa nenhuma. Não pode chamar agentes da Polícia Federal para trabalharem sob
suas ordens diretas. Não pode negar aos advogados o acesso aos autos da sua
investigação. Não pode recusar-se a especificar para os indiciados quais as
acusações legais que estão sendo feitas contra eles. Não pode prender durante
nove meses, e depois condenar a nove anos de cadeia, um deputado federal no
exercício do seu mandato. Não pode bloquear salários. Não pode — mas foi feito,
e continua sendo feito. A única função do inquérito de Moraes, no mundo das
realidades, é perseguir o presidente da República e os seus aliados. Como falar
em neutralidade da “justiça” nesta campanha eleitoral se o ministro mantém
aberto, pelo menos até o dia da eleição, um processo oficial que hostiliza
abertamente um dos candidatos — e só ele? Em que democracia do mundo se faz um
negócio desses? Mais: como Moraes pode ser imparcial e, ao mesmo tempo, receber
para uma reunião íntima, a portas fechadas, os chefes dos partidos de esquerda?
Se existe alguma questão legal a ser resolvida, quem teria de se dirigir ao
ministro seriam os advogados; em vez disso, ele recebe os políticos que compõem
uma das partes da disputa eleitoral. É do conhecimento geral, também, a coleção
de ameaças, inclusive de prisão, que Moraes faz contra o que ele considera o
“mau uso” dos recursos digitais na campanha — e nas quais fica claro, até para
uma criança com 10 anos de idade, qual dos dois lados da disputa está sendo de
fato ameaçado.
“Basta”
o quê? Qual a sentença que o ministro vai dar na próxima vez que Bolsonaro
falar ou fizer alguma coisa que ele não gosta?
O marechal de campo do
“tribunal eleitoral” tem o apoio quase completo dos colegas. O ministro Edson
Fachin parece ser o primeiro deles. Fachin tomou a extraordinária decisão de
anular, por erro de endereço postal, as quatro ações penais contra Lula —
inclusive sua condenação pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, em
três instâncias e por nove juízes diferentes. Ele criou, com essa canetada, a
candidatura de Lula à presidência — e, agora, acusa Bolsonaro de querer dar um
“golpe” nas eleições. Não gostou, nem um pouco, que o presidente tenha se
reunido com embaixadores estrangeiros para falar das eleições. Ele estava
simplesmente exercendo o direito de apresentar o seu lado numa discussão na
qual os adversários se manifestam a cada cinco minutos, aqui e no exterior;
provocou reações histéricas. “Basta”, disse Fachin. “Basta” o quê? Qual a
sentença que o ministro vai dar na próxima vez que Bolsonaro falar ou fizer
alguma coisa que ele não gosta? Ainda falta tempo para as eleições. O
presidente não vai ficar quieto até lá. O STF, então, vai cassar a sua
candidatura? Há também o ministro Luís Roberto Barroso. Esse já disse que
“eleição não se ganha, se toma”. Também afirmou, numa conferência nos Estados
Unidos, que Bolsonaro é o “inimigo”. Dos outros ministros nem é preciso falar.
Sete dos 11 foram nomeados por Lula e Dilma Rousseff. Outros dois são Alexandre
de Moraes, justo ele, e Gilmar Mendes, que chorou em homenagem aos advogados
que defenderam Lula nos seus processos criminais. São essas as figuras que vão
lhe dizer quem ganhou a eleição.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
Revista Oeste, nº 122, 22-7-2022
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