terça-feira, 6 de maio de 2014

Conversas de salão

Luís Naves
 
Alguns políticos de esquerda responderam ao anúncio da saída limpa do programa de ajustamento com uma afirmação: “Portugal está muito pior do que em 2011”. A frase parece sólida e simples, mas não resiste a dez segundos de análise. Em 2011, quando chocou com a parede, o País ficou sem acesso a financiamento externo e o Estado tinha dinheiro para pagar dois ou três meses de salários; após três anos de sacrifícios duros, as taxas de juro são agora inferiores a metade do que eram na altura da pré-falência. Estamos a comparar uma situação de bancarrota iminente com uma de mera incerteza.

Antes de bater na parede, a economia portuguesa estava a crescer devagar e o desemprego a subir depressa, apesar do Governo socialista de então ter tentado resolver o problema aumentando os desequilíbrios orçamental e externo. Entre 2005 e 2009, o PIB cresceu em média anual apenas 0,3%. Depois, veio a crise e, em 2011, o produto caiu 1,3%; ora, este ano, as previsões da Comissão Europeia (que são geralmente conservadoras) apontam para uma expansão já relativamente aceitável, de 1,2% do PIB. Em variação trimestral, a economia está a crescer desde o segundo trimestre do ano passado; em termos homólogos, desde o último trimestre. É inegável: estamos em plena retoma.

Após um ajustamento duríssimo, o consumo privado regressou e a poupança cresceu de forma significativa. Entre 2005 e 2009, o défice da balança corrente atingiu uma média anual superior a 10% do PIB; este ano, o saldo será positivo, da ordem de 1%. Também este ano, haverá saldo primário positivo, de 0,3%, o que contrasta com o défice primário superior a 7% do produto em 2010. A dívida pública obviamente aumentou, mas deverá começar a diminuir já este ano. Em resumo, um País com economia medíocre, que se endividava rapidamente, passou três anos de inferno, mas conseguiu um certo equilíbrio. Com a economia em queda, cortou mais de 7 pontos percentuais de PIB no seu desequilíbrio orçamental, antes de juros, ou seja, cerca de 12 mil milhões de euros.

Claro que o tom retórico dos que discordam é poderoso, para mais antes de eleições, e são mil vezes repetidos os mitos de que os portugueses passam fome, emigram às toneladas e de que foram destruídos até os seus direitos humanos. Na realidade, o desemprego estava a crescer antes do ajustamento (e começou entretanto a descer, antes do final do programa de resgate), a emigração é um fenómeno que se mantém relativamente estável há pelo menos dez anos. Portugal sempre foi pobre e teria sido um verdadeiro milagre se a pobreza não aumentasse com a quebra da riqueza de 6% nos últimos três anos.

Os partidos da esquerda criaram uma eficaz fantasia neo-realista e esconderam dos seus eleitores o facto bem simples de que não havia alternativa às reformas impostas pela troika, cuja intervenção tinha condições leoninas, mas com o mérito de nos salvar de algo bem pior, que era um cenário argentino. No entanto, a direita, que tem evidentes motivos para celebrar o sucesso do programa de ajustamento, reagiu de forma surpreendente. Neste artigo, que cito a título de exemplo, André Abrantes Amaral fala de um governo liberal que nunca existiu, excepto na imaginação. Este é um governo com social-democratas, cujo objectivo nunca foi o de destruir o Estado social, por muito que a esquerda o tenha afirmado.

Os autores da chamada área liberal (que curiosamente não tem qualquer partido e nunca foi a votos), insistem na tese de que não houve reformas. Ora, Portugal passou 12 avaliações da troika, mas eles dizem que não houve reformas. O País cumpriu integralmente o memorando de entendimento, mas segundo os liberais não fez reformas.

Muitos repetem a ladainha de que não houve reforma do Estado, mas também isso é falso: a redução no número de funcionários da administração central vai em quase 20%, foram extintos organismos e reduzida a despesa com fundações e observatórios, controlados os gastos das empresas públicas, reduzidas rendas excessivas em vários sectores. Como podia ser de outra forma, se já foi conseguido um saldo primário positivo? Falta a segurança social e a reforma do sistema político, mas isso não se pode (nem deve) fazer sem a oposição, como aliás demonstra o barulho que provocou o episódio das freguesias ou quando se começou a falar do (inevitável) factor de sustentabilidade nas pensões ligado à evolução da economia.

Há quem se refira a um Portugal que nunca existiu, a uma Europa que não vai existir; há quem não compreenda que governos reformistas, na nossa História, são menos do que o número de dedos numa mão. A conversa de salão tem pouco a ver com a realidade. As reformas que foram feitas sob imposição da troika, estão feitas; as restantes ficam para o próximo ciclo político; algumas serão impostas pelos parceiros europeus, outras pelas circunstâncias. Para mim, este é o balanço a tirar de três anos de ajustamento, período que resultou num País totalmente novo, mérito de quem resistiu às dificuldades e desmentiu os profetas da desgraça.

Pelos vistos, não chega para uma esquerda que se ilude numa espécie de sonambulismo neo-marxista, nem para uma direita que nunca aceitou aqueles rapazes de Massamá, demasiado classe média para serem levados a sério na torre de marfim.
Julgo que são ilusões destas que nos impedem de discutir o futuro.
Título, Imagem e Texto: Luís Naves, Fragmentário, 06-05-2014 

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