Para que a inflação não se torne um recurso populista de governos aventureiros, resta apenas a opção de bancos centrais independentes e relativamente blindados de politicagem
Rodrigo Constantino
Com a mudança de comando na
Câmara, finalmente o projeto de autonomia legal do Banco Central foi votado e
aprovado. A medida é desejável e se arrastava havia décadas, pois encontrava
resistência nos suspeitos de sempre: os políticos que enxergam na política
monetária uma extensão da política fiscal, ou seja, pretendem utilizar as
prerrogativas da autoridade central monetária para custear seus projetos
políticos, gastando recursos que nem sequer existem e que não querem retirar de
forma direta da população por impostos, com receio da impopularidade desse
caminho. O “imposto inflacionário”, por ser indireto, é também mais palatável
para a classe política.
Foi George Bernard Shaw quem
talvez melhor tenha definido o processo inflacionário: “Se os governos
desvalorizam a moeda para trair todos os credores, você educadamente chama esse
procedimento de inflação”. O risco de falsificar a moeda sempre
existiu, e por isso mesmo surgiu a demanda por padrões e selos de governos ou
bancos. A falsificação de moeda é uma fraude, que enriquece o fraudador em
detrimento do restante dos usuários da moeda. Os primeiros a receber o dinheiro
falsificado se beneficiam à custa dos últimos. O governo tem como função
justamente evitar tal fraude, punindo com prisão os criminosos. O grande
problema é quando o próprio governo adere à prática de “falsificação”, com o
respaldo da lei. A invenção do papel-moeda foi um convite tentador para os
governos embarcarem nessa nefasta prática inflacionária.
Pelo menos em três vezes na história norte-americana, desde o fim do período colonial, a população sofreu bastante com o sistema de fiat money. Durante a Revolução Americana, para financiar o esforço de guerra, o governo central emitiu vasta quantidade de papel-moeda, os continentals. A desvalorização foi abrupta, e antes mesmo do término da guerra aquelas notas não tinham mais valor algum. O segundo período foi durante a guerra de 1812, quando os Estados Unidos saíram do padrão-ouro, mas retornaram dois anos depois. O terceiro período ocorreu durante a Guerra Civil, com a emissão dos greenbacks, notas não resgatáveis para pagar a guerra. No final da guerra, os greenbacks tinham perdido metade de seu valor inicial.
O Banco Central é a
instituição que possui o privilégio de controlar a emissão de papel-moeda nas
economias modernas e, portanto, é o grande responsável pelo processo inflacionário.
O aumento no preço dos bens é uma consequência da inflação, pois a maior oferta
de moeda leva a uma queda relativa de seu valor. O público não tem o poder de
criar mais moeda. Somente o governo, por meio do banco central, tem esse poder.
Os bancos comerciais podem obter o mesmo resultado inflacionário com crédito
sem lastro em reservas. Mas cabe ao Banco Central controlar isso por meio de
seus instrumentos, como o compulsório.
O padrão-ouro é um concorrente
de peso para os governos, justamente porque o ouro quase sempre foi escolhido
naturalmente como moeda. Mas os governos não gostam dessa concorrência, pois o
padrão-ouro anula sua capacidade de usar o imposto inflacionário como disfarce
para mais gastos. Aquilo que os inimigos do padrão-ouro costumam enxergar como
seu grande vício pode ser justamente sua grande virtude: ele é incompatível com
uma política expansionista de crédito.
O poder da impressão de
dinheiro artificial nas mãos do governo sempre foi um enorme risco para a
liberdade e a prosperidade dos povos. Esse poder foi utilizado de forma abusiva
desde quando o imperador romano Diocleciano resolveu reduzir o teor metálico
das moedas, fazendo com que perdessem valor real. Em situações mais
emergenciais, essa prerrogativa sempre costuma ser usada pelos governos. Em
tempos de uma suposta ameaça de guerra ou crise econômica, os governantes
acreditam na necessidade urgente de aumento dos gastos públicos, mas muitas
vezes a maioria do povo não concorda. O governo então ignora a saída democrática
de propor uma votação sobre os necessários sacrifícios momentâneos, preferindo
o caminho do engano, por meio da política inflacionária.
Inflação é uma política, pois
é sempre um fenômeno monetário
O recurso inflacionário
garante ao governo os fundos que ele não conseguiria captar com impostos
diretos ou por emissão de dívida. Eis o verdadeiro motivo para uma política
inflacionária. Seus defensores são inimigos do “dinheiro sólido” e,
concomitantemente, da liberdade individual. Até mesmo o ex-chairman do
Federal Reserve Alan Greenspan compreendia isso. Greenspan escreveu na década
de 1960: “O padrão-ouro é incompatível com o déficit crônico nos gastos
governamentais”. Ele acrescentou: “Os defensores do welfare state foram
rápidos em reconhecer que, se desejassem reter o poder político, a magnitude da
taxação teria de ser limitada e optaram por recorrer aos programas de déficit
maciço, isto é, tiveram de tomar dinheiro emprestado, emitindo títulos do
governo, para financiar despesas em grande escala”. O déficit do governo sob um
padrão-ouro é severamente limitado. A lei de oferta e demanda não pode ser
cunhada. Greenspan, então, conclui: “Na ausência do padrão-ouro, não há nenhuma
maneira de proteger a poupança do confisco por meio da inflação”. Se houvesse,
o governo teria de tornar sua posse ilegal. Não por outro motivo o governo
norte-americano proibiu a posse de ouro em 1933.
A volta do padrão-ouro parece
irrealista na economia moderna, então resta apenas a opção de bancos centrais
independentes e relativamente blindados da politicagem. A política monetária é
o instrumento que um banco central tem para conter a expansão creditícia que
produz inflação. Quando leigos no assunto olham apenas o efeito imediato e
criticam decisões de aumento de juros, podemos dar um desconto. Mas quando
economistas e empresários caem na mesma falácia da miopia, levantando a falsa
dicotomia de mais inflação e mais crescimento, aí temos muito que temer.
Afinal, a estabilidade dos preços e a maior previsibilidade advinda dela são fundamentais
para o crescimento sustentável da economia. Essa confiança é o pilar que
sustenta o crescimento a longo prazo, favorecendo o crédito e, acima de tudo,
os investimentos produtivos. Eis os pilares que muitos querem derrubar, pedindo
menor controle inflacionário para ter mais crescimento imediato.
Vários países parecem ter
aprendido a lição de que o controle da inflação é fundamental. Inflação não é
fruto da ganância de empresários ou nem mesmo de choques de oferta, que geram
apenas mudanças relativas nos preços. Inflação é uma política, pois é sempre um
fenômeno monetário. A Zona do Euro, por exemplo, conta com uma meta implícita
de 2% para a inflação, e a independência do banco central é garantida, nas
tradições do Bundesbank. Os Estados Unidos possuem o Federal Reserve, banco
central independente e que trabalha com meta implícita de 2% também. A Suíça
vai na mesma linha, com meta implícita de 2%. O Canadá possui meta oficial de
2%, assim como a Inglaterra e a Suécia. Entre os países menos desenvolvidos, o
Chile possui uma meta oficial de 3%, a mesma de Hungria, Coreia e México. A
Noruega trabalha com metas oficiais de 2,5% para a inflação, a mesma da
Islândia e da Polônia.
“Não há meio mais seguro e
mais sutil de subverter a base da sociedade do que corromper sua moeda —
processo que empenha todas as forças ocultas da economia em sua destruição, de
modo tal que só uma pessoa em cada milhão consegue diagnosticar”, resumiu
Keynes. A garantia de independência legal do nosso Banco Central do Brasil deve
ser defendida por todos aqueles que temem, com razão, um retrocesso populista
nessa área. Basta pensar na Nova Matriz Macroeconômica do PT, ou num cenário
sombrio de alguém como Ciro Gomes assumindo a Presidência, para deixar claro
como é importante tentar proteger o Banco Central das garras políticas.
Tecnocratas são humanos,
sofrem influências de paixões, erram. Mas um presidente de banco central
subserviente ao presidente da República é algo bem pior do que um que responda
apenas aos padrões objetivos estabelecidos pelo Congresso, tendo de cumprir a
meta de inflação determinada e ponto-final.
Título e Texto: Rodrigo
Constantino, revista Oeste, 12-2-2021
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-