sexta-feira, 9 de julho de 2021

[Aparecido rasga o verbo] Como em brincadeiras de gangorras

Aparecido Raimundo de Souza 

TRISTE, REALMENTE MELANCÓLICO e oprimente é o dia a dia do cidadão comum, aquele indivíduo humilde e assalariado que vive às margens da sociedade degradante. Tudo para ele é mais difícil, a começar pela vidinha nojenta e asquerosa que leva, pelo bairro infame onde mora, afastado do grande centro nevrálgico, ou melhor, onde se esconde e pela gororoba que come, isto quando come... 

Mais penoso ainda. Enfrentar a condução (condução?!) na hora do aperto de todas as manhãs, os ônibus lotados, abarrotados como sardinhas em latas, para chegar até o local de trabalho, quando tem trabalho esperando por ele. A rotina de sempre, enervante, incansável difícil de ser engolida, pior, digerida. Todos os dias, acordar às quatro e meia em ponto. Tomar um banho gelado debaixo de um pedaço de cano enferrujado, onde deveria ter um chuveiro esguichando água na ponta. 

Em seguida, o primeiro desjejum. Tudo muito simples: metade de um pão dormido, o café requentado com gosto de barata, manteiga velha com ranço. Enquanto a Maria prepara a marmita, composta de arroz puro e duas bananas cozidas, Cláudio troca de roupa, num cômodo ao lado, onde numa caixa velha de cesta básica, dorme Juninho, o herdeiro, com três meses de vida. 

Cláudio labuta pesado. Dá um duro debaixo de sol e chuva, há quase oito meses, numa firminha de limpeza, dentro de uma empresa maior. É a tal da terceirização. Não pode isto, não pode aquilo. Se faltar, os patrões não aceitam atestado médico. O infeliz do funcionário perde o dia, o ponto, a moral, a grana de merda quando não é sumariamente cortado dos quadros e fim de papo. 

Café tomado, beija rapidamente o filhinho no berço improvisado. Em seguida acaricia o rosto da mulher, beija a boca sem dentes da patroa com bafo de noite mal dormida. Da porta de entrada, presa por uma tramela de madeira que a um espirro mais forte é capaz de se abrir toda no susto, ela acena e manda um ‘vai com Deus, amor’. Assim, segue o malfadado belisário, cabisbaixado, apressado por vielas esquisitas, pulando de um lado para outro, desviando das valetas imundas que saem de outras casas (a maioria de barracos cobertos com lonas remendadas e sacolas de lixos) e permanecem à céu aberto. 

Leva, no braço esquerdo, dependurada, uma sacolinha de supermercado. É o almoço, a boia, o faz-me rir da barriga quando resolve roncar. Na mão direita, as moedinhas contadinhas para pagar a condução. Se por acaso perder um níquel de cinco centavos, que seja, indo ou vindo, das duas uma terceira: ou falta, ou dorme no emprego ou retorna a pé. Haja fôlego! Minutos à frente, alcança o asfalto da avenida movimentada. Uma fila enorme lhe espera. Ir sentado, nem que a vaca tussa! 

De repente, o quarenta janelinhas pinta na esquina e, junto, um outro ‘deus os acuda’, entra em cena. Nesta hora, uma algazarra babelesca se inicia. Gente gritando, pessoas ansiosas para embarcarem a todo custo. Senhoras com bebês no colo pulando na frente, dando cotoveladas, xingando palavrões. Cada um, a seu bel prazer, querendo ocupar os melhores cantinhos, num espaço minúsculo, quase inexistente dentro do irreal. 

No meio desta desordem sem precedentes, entremeada entre um alvoroço barafundado, o Cláudio viaja, espremido, amassado, pisoteado, torturado, com a mão bem segura na comida dentro do recipiente de plástico, a outra no ombro de um desconhecido, rezando para que o buzu não dê uma freada rápida e ele se veja de encontro ao chão, catando cavacos. Reza, em silêncio, para que o ponto onde descerá chegue o mais rápido. Aquele coletivo realmente não é moleza. E o motorista, indiferente aos protestos e baixos calões vindos de todos os desvãos, continua a viagem indiferente, interminável, parando em todos os pontos, sempre pegando mais gente, mais gente, mais gente... 

Apesar das horas, os corpos já vêm deteriorados. Sobem para o bolo humano do transporte apinhado, as roupas usadas fedendo a mijos. As sujidades, como um todo, aparecem visíveis nas camisas molhadas de suores catinguentos. De contrapeso, rostos escancarados pingando odores malcheirosos como goteiras de beirais entupidos. Sem falar nos passageiros que trajeteiam com os vidros das janelas fechados e crianças chorando. Um inferno ambulante movido a seis rodas transitando em pleno asfalto em direção ao caos. 

Pelos vidros embaçados, Claudio vislumbra, vez ou outra, 'papadores de filas' (articulados), igualmente abarrotados de almas, os olhos perdidos, como os seus, num além sem horizontes, sonhando um futuro que não chega, que não melhora, que não brilha. Ao lado desta ala interminável, carrões os mais diversos tipos cruzam desordenados, mostrando o rame-rame desconcertante que coloca em frangalhos qualquer estado de nervos à flor da desolação. 

— Socorro, quero descer, grita um espavorido, à alta voz. Sai da frente, porra!
— Tenha calma, meu chapa. Isto aqui não é de uso exclusivo seu.
Outro mais afoito, vai na onda e se esgoela:
— Quer conforto? Aluga um táxi!

Um terceiro entra no furdunço:
— Por que não pegou um Uber?
Um engravatado sentado no conforto da janela, finge ler O que é a Loucura, de Darian Leader. Esbraveja:
— Compra um carrinho em suaves prestações...
Bem lá atrás, um rapazola de extensão vertical acima do normal, igualmente encarcerado à turba, confunde alhos com bugalhos. Resolve engrossar o caldo. Bufa:
— Ai, joga na mega sena. ’Pruveita qui tá cumulada...’.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, Espírito Santo, ES. 9-7-2021

Colunas anteriores: 
Apenas um grito resolveria o problema 
A trama do imediato 
O morto em suspenso 
De graça 
Anões 
Terminal 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-