Os russos permitiram a concentração de poder num só homem, que se despiu de ideologias e adotou um pragmatismo nacionalista cuja meta era tornar a Rússia um país temido novamente
Rodrigo Constantino
Com a invasão da Ucrânia pela Rússia, o mundo se voltou para Vladimir Putin, aquele que comanda com mão de ferro o país desde 1999. Todos querem entender a cabeça daquele que ameaça levar o mundo a uma guerra nuclear. Será que ele está blefando? Seria Putin capaz de apertar o botão vermelho? Como as sanções econômicas impostas pelo Ocidente podem frear as pretensões imperialistas da Rússia? Putin é comunista ou nacionalista? E por aí vai.
Foto: Asatur Yesayants/Shutterstock |
Naturalmente, a psicologia de alguém como Putin é algo complexo. Sabemos de seu passado, do fato de que seu avô foi cozinheiro de Lenin e também de Stalin, que seu pai, um operário, foi ferido na Segunda Guerra Mundial, que ele foi agente secreto na KGB, e que considerou o debacle da União Soviética uma “catástrofe geopolítica”. Ou seja, seus laços com o imperialismo soviético são evidentes. Mas Putin também é um nacionalista, e em muitos aspectos se parece com um novo czar, lutando para resgatar a grandeza da “Mãe Rússia”. É aqui que atrai, além de comunistas, reacionários.
O Ocidente está em crise de
identidade, submetido ao globalismo de elites “progressistas”, materialistas e
cosmopolitas. Os conservadores estão absolutamente certos quando apontam para a
doença. Erra na receita, porém, quem acha que alguém como Putin pode ser parte
da resposta. Basta conhecer um pouco do perfil do autocrata russo para
compreender que ele está longe de ser a solução para as mazelas ocidentais. Ao
contrário: a civilização ocidental precisa ser defendida justamente por
representar valores que alguém como Putin, no fundo, repudia com veemência.
Putin nunca demonstrou qualquer apreço pelas instituições democráticas. Se o império das leis é um dos pilares mais importantes no Ocidente, ainda que em crise pelo abuso de poder arbitrário de hoje sob o pretexto da ciência, Putin simboliza seu oposto, a concentração de poder num só indivíduo, que tudo pode. Ele assumiu o poder quando havia um vácuo deixado pela crise de 1998 e a liderança frágil do bêbado Yeltsin. Oligarcas sem escrúpulos que conquistaram muito dinheiro e poder após a queda do regime soviético ajudaram a criar Putin como político, e logo em seguida o ex-espião destruiu um a um de seus “criadores”.
No livro The Oligarchs,
de David Hoffman, essa história é contada em detalhes. É preciso entender que
Yeltsin colocou alguns liberais no comando da economia, mas faltavam à Rússia
instituições básicas para o funcionamento do livre mercado. O que tivemos em
seu lugar foi uma “lei da selva”, um “vale-tudo” em que os tais oligarcas
exploraram com maestria à custa do povo. Quando veio a crise, ela foi associada
de maneira equivocada ao capitalismo. E foi nesse contexto que Putin chegou ao
poder. Sim, ele foi pragmático para não matar a galinha dos ovos de ouro. Mas
ele jamais depositou esperança no mecanismo de mercado para levar prosperidade
aos russos.
Não se tratava, portanto, de
um modelo de meritocracia, e sim um de conexões. Após utilizar os oligarcas
para sua ascensão, Putin percebeu que era arriscado demais depender deles, e
por isso passou a perseguir cada um deles. O dono da Yukos, Khodorkowsky, então
o homem mais rico do mundo emergente, foi preso e esmagado como uma barata em
poucas semanas. Os dois barões da mídia tiveram de fugir. O recado era claro:
ou se submetia ao conceito de tirania de um homem só ou seria destruído. Putin
não se importava com a riqueza desses oligarcas, desde que isso não
significasse poder político. Esse seria todo dele, apenas dele.
O capitalismo russo floresceu
sem qualquer transparência, por meio de propinas, tudo feito às sombras, com
conexões e influência, com golpes escancarados, sem qualquer instituição sólida
para proteger a propriedade privada. O liberal Yegor Gaidar, reformista
convocado por Yeltsin, temia justamente isso: que os russos fossem se sentir
traídos pelo capitalismo. Eu estive num jantar com Gaidar, um admirador de
Hayek, e ele parecia alguém sem interesses materiais. Era alguém que realmente
acreditava num caminho alternativo para a Rússia, similar ao traçado pelo
Ocidente. Na era Putin, figuras como Gaidar não tinham qualquer espaço no
governo.
Putin claramente desprezava os
oligarcas que só pensavam em enriquecer por meio de esquemas fraudulentos e,
eventualmente, mandar o dinheiro para fora do país. Os reformistas liberais
tentaram oferecer o máximo de liberdade antes de criar regras claras do jogo, e
no vácuo dessas regras vieram forças caóticas do mal, como charlatães,
brutamontes, gangues criminosas, políticos corruptos, burocratas espertos,
mafiosos etc. Foi nesse ambiente que o ex-espião da KGB concentrou boa parte do
poder político. A Rússia nunca desenvolveu qualquer respeito pelo império das
leis, pelo estado de direito.
Vale notar que Putin foi
catapultado ao papel de líder logo no começo de sua gestão como
primeiro-ministro, quando uma série de bombas aterrorizaram Moscou. Os supostos
terroristas nunca foram encontrados, o que alimentava a suspeita de se tratar
de um trabalho interno do serviço secreto russo, ligado a Putin. O prefeito
Luzhkov, seu adversário político, teve sua imagem muito desgastada, enquanto
Putin culpou os chechenos e lançou uma ofensiva militar em larga escala,
fazendo sua taxa de aprovação disparar.
Ninguém conhecia direito o
pensamento político de Putin, ou o que ele fizera na KGB. Os próprios oligarcas
ainda o encaravam como uma marionete em suas mãos. Mas, após os anos de
fraqueza de Yeltsin, os russos pareciam apreciar o estilo firme de Putin, e
muitos compartilhavam de seu ódio pelos chechenos. Mesmo os “liberais”, cansados
do caos econômico, pediam que Putin fosse o “Pinochet russo”, acreditando que
apenas uma ditadura política poderia viabilizar as reformas econômicas de
mercado. Putin soube usar isso a seu favor.
Os
russos, sem tradição de liberdade, parecem ter chegado à conclusão de que uma
“democracia” controlada de cima é a única alternativa viável no país
Fechado, discreto, sisudo,
Putin nunca participara de competições políticas reais, apenas de jogos de
bastidores. Ele era extremamente disciplinado, inclusive a ponto de não
demonstrar muita ambição no começo e sinalizar lealdade àqueles que o alçaram
ao poder. Ele temia a imprensa, em especial a televisão, e por isso seus
primeiros alvos foram os oligarcas da mídia. A censura foi imposta durante a
guerra, e nunca mais abandonou a Rússia. Putin não queria destruir o sistema,
apenas controlá-lo. Ao destruir Gusinsky e Berezovsky, os dois barões da mídia,
o caminho ficou livre para o restante do trabalho.
O caso envolvendo Berezovsky,
seu principal “criador”, merece maior atenção. Berezovsky passou a discordar de
Putin sobre a guerra na Chechênia, e cometeu o erro de externar sua opinião em
público. Putin não tolera isso. Berezovsky chegou a enviar uma carta a Putin
alertando para seus erros ao escalar o conflito, impor sua vontade aos
governadores e tentar controlar a mídia. Mas o magnata não tinha chance nessa
batalha, e acabou vendendo seu canal de TV para Roman Abramovich, aliado de
Putin, e fugiu do país.
Como coloca Lilia Shevtsova
em Putin’s Russia, o desejo avassalador entre a classe política e
os russos em geral era que Putin se mostrasse um líder que poderia trazer ordem
ao caos de Yeltsin e acabar com a imprevisibilidade do Kremlin. Ao apostar nisso,
porém, os russos permitiram a quase absoluta concentração de poder num só
homem, que se despiu de ideologias e adotou um pragmatismo nacionalista cuja
meta era tornar a Mãe Rússia um país respeitado e temido novamente.
Enquanto o preço do petróleo
continuar alto, Putin tem pouco a temer. Não é possível negar que ele conta com
apoio popular. Os russos, sem tradição de liberdade, parecem ter chegado à
conclusão de que uma “democracia” controlada de cima é a única alternativa
viável no país. Muitos são inclusive nostálgicos dos tempos soviéticos, apesar
de tudo, apenas por conta do papel geopolítico exercido pela Rússia. Não é uma
nova dacha para as férias ou trocar de iPhone todo ano que os move, e sim um
sentimento coletivista de pertencer a algo maior.
A economia russa é pequena,
quase do tamanho do Estado da Flórida. Mas os russos que apoiam Putin estão
preocupados com outras coisas. É um grave equívoco medir Putin pela régua
“progressista” ocidental. Trata-se de um autocrata nacionalista obstinado, capaz
de tudo para atingir seus fins, e que não vai descansar enquanto a Rússia não
for, novamente, um adversário à altura do decadente Ocidente. Aqueles que
acreditam que ele pode ser um bom substituto do Ocidente, porém, estão
redondamente enganados. Putin é a antítese de tudo que a civilização ocidental
representa.
Título e Texto: Rodrigo
Constantino, revista Oeste, nº 102, 4-3-2022
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não aceitamos/não publicamos comentários anônimos.
Se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-