domingo, 11 de julho de 2021

[As danações de Carina] Estopim implantado

Carina Bratt

ELA FICA UM TEMPO enorme acomodada na rede que colocou no escuro da sua varanda olhando para o vazio do nada além do alcance das suas vistas como se de repente o seu dia a dia pacato e tranquilo tivesse ficado todo em branco como uma folha de papel sem nada escrito. De repente os seus anos vividos (todos eles) se viram deletados por alguém invisível... quem sabe um ladrão maquiavélico vindo do espaço só para ver o que aconteceria se lhe roubasse a cena. Neste interregno contínuo de quase transe loucura (ou seria de fato uma alienação meio que afronésica) a beldade busca incansavelmente espantar os fantasmas que povoavam a sua cabeça.

Sabe de antemão que a cachola está repleta de negritudes intransponíveis. Uma sombriedade difusa que não a deixa enxergar um palmo adiante. Se sente perdida dispersa esparramada numa devassidão inexplicável dentro de uma clausura que ela mesma criou e se colocou dentro como uma fugitiva para escapar de si mesma e de seus pesadelos mais contundentes e tresloucados. A todo instante apesar da vista da cidade agitada e alvoroçante lá embaixo vê fantasmas. Por onde quer que espie se depara com aparições irreais. Um monte delas. Assombrações e espectros de rostos desconexos. Os ponteiros do relógio na peça ao lado assinalam oito horas da noite.

Tem, entretanto, a consciência (ou o que ainda resta dela) plena para entender que para se livrar destes malfadados e indigestos espectros de personalidades dúbias e ambíguas carece de muita luz. Luz forte e intensa. Facho possante e vigoroso igual ou melhor que um farol ao alcance das mãos para inundar todos os cantos e recantos obscurecidos. De roldão minúsculos e quase imperceptíveis buraquinhos e desvãos se mostram palpáveis. Nesta insanidade meio cá meio lá mais para acolá que ‘acocá’ cochila por breves instantes. Às vezes fica difícil acordar dos próprios receios e medos. Se pega abraçada nesta letargia amalucada (desde que sentiu na pele ter uma espécie de desvio de conduta subversiva) sem eira nem beira.

Em razão disto não distingue onde está situada para onde deve seguir ou que direção tomar para voltar para a sua vida normal. Se depara entrementes observando que a sua identidade se adulterou. A fotografia se deteriorou. Se sente uma criatura refém aprisionada à uma marginalidade opressiva que desconhece como se apossou da sua paz reinante. De contrapeso sente na pele arrepiada dos pés às raízes dos cabelos que perdeu a ternura antiga... aquela magia que vivia embrulhada numa veleidade única que desde sempre esteve pulsante ao seu lado. Ao olhar para si num caco de espelho fictício se vê envelhecida e diminuída. Acabrunhada. Como um amontoado de lixo humano ao acaso de avenidas começa a chorar copiosamente.

Pior que o choro assim do nada se acha inerte desprovida de vida como um peso morto e inanimado um pedaço de vida fracassada tendo ao seu derredor todos os contratempos e amofinações agastamentos e empecilhos existentes na face da Terra. O que fazer? Que decisão tomar? Deixar de existir nesta altura do campeonato   pensa com seus botões seria a melhor solução uma vez que não sabe como regressar à opção da serenidade que pontilhava a sua paz de espírito e norteava a sua vidinha simplória (desprovida de coisas supérfluas é bem verdade) mas que não deixava o seu estado de espírito ficar assim aterrorizado nem por um minuto notadamente para baixo derreado e prostrado os faróis da alma apagados e todo o seu horizonte desprovido e divorciado de cores baldias e carecentes à mercê de um impacto sinistro e jamais sentido.

Num momento de lucidez embriagada tem uma ideia. Meio boba meio besta meio sem nexo. Mas uma ideia. Por que desprezá-la?! Coisa de quem vive só e briga acirradamente consigo mesma pela falta de um par perfeito um ser de carne e osso para desabafar. Para poder falar... falar... falar... tagarelar... gritar... insultar... asperejar... praguejar... afrontar... um ser vazio e oco como a sua figura insípida e enfadonha monótona e sem graça. Decide pô-la em prática. Pula da rede às carreiras. Vai a passos largos até a cozinha. Passa os dez dedos no liquidificador sobre a geladeira e regressa à sacada e impensadamente o atira pelo peitoril torre abaixo. Lá na portaria um estrondo se agiganta como uma bomba. Em contínuo na calçada inteira uma multidão recém-formada de curiosos se detém assustada e aturdida. A galera em polvorosa olha para cima tentando descobrir de onde ou de qual alpendre veio aquele eletrodoméstico que poderia no pior dos desastres ter acertado um transeunte que passava e o levado à morte.

Neste furdunço vozes furiosas e recheadas de impropérios se insurgem encolerizadas. Punhos se fecham em atitudes de indivíduos que gostariam de subir até o pavimento do engraçadinho ou da desmiolada e lhe quebrar a fuça. ‘Vadio desgraçado. Poderia ter matado uma criança uma senhora um idoso... trombeteiam gatos pingados’. A autora do ato não se mostra não se define. Tem pelo contrário uma reação esquisita e ainda mais inesperada. Cai numa gargalhada estrondosa. Os fantasmas coitados (assustados e boquiabertos) correm de perto dela aturdidos e amedrontados. Seus medos vão pelo mesmo caminho. O transe de loucura a leva para debaixo do chuveiro. Pelada enfrenta a ducha fria de água gelada. Ela lhe restitui lhe devolve lhe anima sobremaneira lhe concede (ainda que à beira de uma quase desgraça) lhe concede a paz que havia se esvaído.

Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha, no Espírito Santo. 11-7-2021 

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