Vai ser difícil acusar o adversário de ladroagem se Lula foi o chefe do governo mais corrupto da história do Brasil
J. R. Guzzo
Como qualquer cidadão deste país pode constatar diariamente por tudo o que lhe dizem, mostram e escrevem, Lula é o próximo presidente do Brasil. Já está, a esta altura, escolhendo seus ministros — Guilherme Boulos, por exemplo, para crescer na foto e ser o seu candidato nas eleições de 2030, ou Dilma Rousseff, aí já não se sabe por quê —, está escrevendo as “políticas públicas” do seu governo, combinando chamar de volta as empreiteiras de obras e os médicos cubanos, e fazendo aquelas coisas todas que fazem os presidentes que têm hora marcada para assumir. Pergunte ao ex-presidente Fernando Henrique, ao Datafolha ou ao Jornal Nacional — é Lula, e não se fala mais nisso.
E Jair Bolsonaro, não existe
mais? Não, não existe. Todos os citados aí acima mais os cientistas políticos,
as classes ilustradas e o New York Times estão certos de que
ele morreu e não sabe. Sua popularidade cai a cada cinco minutos. Proibiu a
compra de vacinas e, ao mesmo tempo, roubou milhões de vacinas — que, aliás,
não foram compradas — embora quase 120 milhões de brasileiros já tenham sido
vacinados. Tocou fogo na Amazônia. Matou mais de 500.000 pessoas, e vai matar
mais. É genocida. Perseguiu os índios, os quilombolas e as mulheres. Não pôs a
máscara. Vai ser expulso da Presidência por um impeachment que
já está no papo; ou seja, não vai nem ser candidato.
Muito bem — mas, agora, é preciso que essas coisas todas aconteçam. Em primeiro lugar, Lula tem de vencer as eleições de 2022; não chegará lá, como tudo o que lhe acontece de bom na vida hoje em dia, por uma liminar do STF, mesmo com todo o empenho dos ministros Fachin ou Lewandowski, Toffoli ou Gilmar Mendes. Para isso terá, em primeiro lugar, de ser candidato — algo que ele quer muito, mas que pode não ser possível. Sua única vantagem competitiva de verdade, neste momento, é o desmanche de Bolsonaro. Durante os próximos quinze meses o presidente vai ter de continuar se desmanchando, e ele, Lula, vai ter de continuar crescendo — fora do mundo encantado das pesquisas. Não é uma questão de escolha: para Lula ser presidente de novo, tem de ser assim.
Há dificuldades nessa caminhada em que um tem de andar sempre para trás e o outro tem de andar sempre para a frente. Tome-se, para começar, o tema da corrupção — é complicado fazer uma campanha eleitoral no Brasil sem acusar o outro de corrupção. Lula e o PT, como se sabe, nunca viveram sem isso numa eleição; a não ser quando tiveram de suceder a si próprios, sempre jogaram tudo no “pega ladrão”. E na campanha de 2022? Vai ser difícil acusar o adversário de ladroagem se você foi o chefe do governo mais corrupto da história do Brasil, puxou cadeia por corrupção passiva e lavagem de dinheiro e tem de convencer da sua honestidade pessoal uma população notoriamente descrente das virtudes de qualquer pessoa que vai presa.
É falar de corda em casa de
enforcado, e o PT sabe disso; suas lideranças, aliás, já estão dizendo que Lula
vai “dar preferência”, na sua campanha, aos “temas mais ligados aos interesses
diretos da população”. Gilmar Mendes, Fachin, Lewandowski & Cia. podem
dizer quanto quiserem que Lula é “inocente” — quem acredita em alguma coisa que
venha do STF? Para Lula, na verdade, seria melhor que nenhum deles dissesse
nada a respeito do assunto de hoje até o dia da eleição. Quanto menos o nome do
ex-presidente aparecer ligado a qualquer ministro do STF, melhor para a sua
reputação. Ele vai ficar falando na sua “inocência”, é claro — mas roubalheira
do adversário, que é bom numa campanha, não deve rolar.
Há também o problema da
vacina, e não é pouca coisa. Os problemas da vacinação, reais ou imaginários,
teriam de ser o carro-chefe de uma campanha eleitoral nos dias de hoje — o que
poderia ser melhor, numa hora dessas, do que acusar o outro lado de não aplicar
uma vacina que vai salvar “vidas”? Só mesmo a ajuda de Deus. Lula e o PT
contavam, de coração, com o lema “vacina para todos”. Mas o que vai acontecer
quando todos estiverem vacinados? Estamos em julho de 2021 e a vacina já está
chegando aos jovens; até o fim do ano, a vacinação estará encerrada. Falar, em
julho do ano que vem, que a vacina “demorou”, ou que Bolsonaro disse que não
era culpa dele se alguém virasse jacaré, ou que o general Pazuello fez isso, ou
não fez aquilo, não vai adiantar nada; ninguém vai nem mais lembrar quem foi o
general Pazuello.
Falar da “recessão” também não
está com boa cara. Em primeiro lugar, a maior criatura política da vida de
Lula, a ex-presidente Dilma, criou e agravou a pior e mais longa recessão da
economia brasileira, por sua pura inépcia e má gestão das autoridades
econômicas. Como na ladroagem, é melhor não mexer com o assunto. Em segundo
lugar, vai ser preciso haver mesmo uma recessão em 2022. Este ano, pelos
cálculos feitos até agora, vai haver crescimento — de 5,2%, o maior desde 2010.
Não se vê, hoje, nenhum fato indicando que em 2022 as coisas andem ao contrário.
É o mesmo problema com o desemprego. É um caso de torcida: dá para aumentar os
quase 15% de hoje, mas isso não é muito pior que o desemprego da recessão de
Dilma. A foto de hoje também não é animadora para Lula: foi criado 1,2 milhão
de empregos formais neste primeiro semestre. O enfraquecimento da covid e o
avanço da vacinação, ao mesmo tempo, sugerem que essas taxas vão continuar
subindo.
Propor o quê? Novas estatais?
Transposição do Rio Amazonas?
Outra dificuldade é o próximo
Bolsa Bolsonaro — o “auxílio de emergência”, ou “renda cidadã”, ou outro
programa qualquer de entrega de dinheiro à população. É certo que o governo,
que já experimentou essa substância e gostou, não vai ficar parado, olhando a
paisagem. Vem mais dinheiro por aí — e, obviamente, vai ficar ruim cair de pau
em cima de um governo que está dando uma mesada para os pobres, mesmo porque já
caíram de pau quando o auxílio atual foi temporariamente suspenso. Vão falar
que é demagogia, claro, mas e daí? Lula não pode propor que Bolsonaro pare de
pagar, ou pague menos; o Congresso não vai vetar, em nome da austeridade nas
contas públicas, e o STF vai ficar quietinho. É uma sinuca.
Seria preciso, também, arrumar
mais 500.000 mortes para engrossar a conta do genocídio, ou de preferência 1 milhão.
Lula pode contar com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde, que é
dirigido por um cidadão que se chama “Carlos Lula” e diz quantas pessoas morrem
a cada dia de covid, em sociedade com um “consórcio” de veículos de imprensa.
Mas não é fácil um negócio desses dar certo — há os relatos dos hospitais que
informam sobre a ocupação de leitos nas UTIs, e outras complicações. Há, é
claro, os intratáveis problemas de Bolsonaro no Congresso e a pressão, cada vez
mais agressiva, para o seu impeachment — algo que começou no
dia da sua posse e continua até hoje. Mas aí é preciso esperar que o presidente
não faça nada para se defender, e deixe dois terços dos deputados e dos
senadores votarem contra ele — isso se o pedido de impeachment chegar
ao plenário.
Não se sabe até agora, enfim,
qual programa de governo Lula terá para apresentar durante a campanha — coisa
que sempre pode ser inventada em meia hora, mas que ainda assim precisa se
sustentar em alguma coisa. Em outras palavras: é preciso dizer ao eleitor por
que raios, afinal, ele deveria votar em você e não no outro. A grande esperança
da esquerda, do Brasil “que pensa” e da mídia é que a rejeição a Bolsonaro
resolva tudo. Lula nem precisa fazer algum esforço especial. Basta que seja
candidato, fique parado e não crie nenhum grande problema; Bolsonaro vai se
destruir sozinho, pelo simples fato de ser Bolsonaro. O problema com esses
desejos é que a maioria do eleitorado tem de pensar do mesmo jeito.
Propor alguma coisa vai ser
difícil. Propor o quê? Novas estatais? Distribuição ao povo das reservas
internacionais? Perdão das dívidas pessoais? Isenção geral de aluguéis?
Transposição do Rio Amazonas? Volta dos médicos cubanos? A agenda pró
homossexuais-negros-índios-mulheres e contra as queimadas-agrotóxicos-militares,
por outro lado, é difícil de pegar. Não funcionou na eleição de 2018.
Funcionaria na eleição de 2022? Por quê? A imprensa, os intelectuais e o centro
civilizado, por fim, acreditam muito em derrotar Bolsonaro falando mal da
“ditadura”. Não parece ser uma grande ideia. Uma parte não acredita em golpe de
Estado, regime militar e ditadura. Outra parte é a favor. Melhor deixar quieto.
Bolsonaro, pela dificuldade de
olhar além do seu próprio eleitorado, governar o país com mais harmonia e menos
tensão e admitir que política vai além das redes sociais e do celular, ajuda
qualquer adversário. Mas é preciso, para quem quer ficar no seu lugar, ajudar a
si próprio. O presidente é dado como liquidado; pode até ser que esteja mesmo.
Bolsonaro, por esse modo de ver as coisas, foi eleito em 2018 porque era o
anti-Lula. Lula vai ser eleito em 2022 porque é o anti-Bolsonaro. Mas o
ex-presidente, o maior nome lançado contra ele até o momento, tem pela frente
uma corrida de fundo, com barreiras.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista
Oeste, nº 69, 16-7-2021
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