sábado, 11 de setembro de 2021

A Democracia contra a Democracia

O problema que está causando toda essa desordem é o fato de que Bolsonaro foi eleito em eleições limpas, tem chances objetivas de se reeleger e não é aceito pelo Brasil que manda na máquina do Estado

J. R. Guzzo

Veio, enfim, o maior teste de força popular que o presidente Jair Bolsonaro já teve desde que assumiu o governo, dois anos e meio atrás — e o presidente, à vista de todos, saiu ganhando. O povo foi em massa para a rua em seu apoio e contra os seus inimigos, apesar do imenso esforço feito pelas autoridades locais, pela mídia e pelas “instituições” para que não fosse. (Chegaram a dizer que “grupos armados” de bolsonaristas iriam atirar na multidão, e que haveria um “cadáver”; não se esclareceu por que diabo fariam uma coisa dessas, mas a ameaça foi feita e levada a sério pelos grandes meios de comunicação.) Não adiantou nada. A Avenida Paulista, símbolo da praça pública no Brasil de hoje, lotou — como lotaram a Esplanada dos Ministérios, a Praia de Copacabana e centenas de outros lugares pelo Brasil afora. Foram as maiores manifestações de rua que o país já teve desde o “Fora Dilma” de 2016.

Isto dito, a questão que fica é: “E daí?” Bolsonaro está em guerra com o Supremo Tribunal Federal, e usou as manifestações do 7 de Setembro para dobrar a aposta. Disse, entre outras coisas, que o ministro Alexandre de Moraes deveria deixar de ser “canalha”; também disse que o ministro deveria “se enquadrar” ou, então, “pedir para sair”. Moraes e o STF, do seu lado, continuam numa atividade frenética e diária contra Bolsonaro — prendendo gente, bloqueando contas, mandando depor na polícia, e por aí afora. O que muda nessa guerra, então, depois que a multidão foi para a rua? Para Bolsonaro, muda uma coisa fundamental: o impeachment, única forma indiscutivelmente legal de tirá-lo da Presidência, ficou muito mais difícil do que já era. É a velha história: rua cheia, impeachment vazio. Já era muito difícil, antes do 7 de Setembro, reunir no Congresso os votos necessários para aprovar o impeachment; agora, com centenas de milhares de pessoas manifestando seu apoio a Bolsonaro em praça pública, ficou mais difícil ainda. Para o STF, vai ser preciso concentrar a energia numa estratégia de jogar todas as suas fichas no tapetão dos tribunais superiores; ou se derruba o homem ali, e todo mundo aceita quieto, ou ele continua no governo.

O povo esteve na rua, sem dúvida — e a queda de popularidade de Bolsonaro, que vem sendo anunciada com tanta esperança pelos institutos de pesquisa, foi desmentida em seu primeiro teste diante da realidade. É certo, igualmente, que as tentativas da esquerda de concorrer no dia 7 com Bolsonaro foram um fracasso miserável de público. Também fica com uma fratura exposta o imenso esforço da mídia para dizer que as manifestações foram antidemocráticas. Como assim “antidemocráticas”, se a população exerceu o seu direito de se expressar em público — por sua livre e espontânea vontade, com bandeiras do Brasil e com crianças, sem ônibus das prefeituras, sem lanche, sem nenhuma violência, sem uma única vidraça quebrada? Tudo bem, mas o povo na rua não vai fazer que o ministro Moraes se “enquadre”, e muito menos que peça para sair; não vai fazer o STF menos hostil a Bolsonaro em suas decisões, nem levar ao arquivamento do inquérito (este sim, ilegal e antidemocrático) conduzido pelo ministro Moraes. O STF, com a massa na Paulista e tudo, sente que tem a força da inércia a seu favor; parece determinado a levar adiante a guerra.

Continua exatamente do mesmo tamanho, assim, o único problema de verdade que existe hoje na política brasileira. Esqueça a discurseira neurastênica que aparece dia e noite, em tempo real, em todo o noticiário — anunciando calamidades imaginárias, golpes de Estado que ninguém vai dar e “ameaças à democracia” descobertas debaixo de cada cama pelo ministro Alexandre de Moraes e por seus colegas do STF, que funciona cada vez mais, nestes dias, como uma delegacia de polícia. O problema que está realmente causando toda essa desordem é, muito simplesmente, o presidente Jair Bolsonaro — ou, numa tradução mais direta, o fato de que o atual presidente da República foi eleito em eleições limpas com quase 58 milhões de votos, tem chances objetivas de se reeleger para mais quatro anos e não é aceito, de jeito nenhum, pelo Brasil que manda na política nacional, nas decisões públicas e na máquina do Estado.

Bolsonaro, para esse Brasil, nunca poderia ter sido candidato à Presidência em 2018. Tendo sido candidato, não poderia nunca ter ganhado a eleição — mesmo porque não tinha partido, dispunha de tempo zero na televisão e foi excomungado desde o primeiro minuto pela mídia, pelas elites e pelas classes intelectuais, do Brasil e do mundo. Tendo ganhado, não poderia nunca ter tomado posse. Tendo tomado posse, não poderia nunca governar. O diabo é que foi acontecendo tudo isso, já se passaram dois anos e meio e ele continua presidente. Pior que tudo, para quem não admite a sua existência na vida política brasileira: pelo que se sabe, Bolsonaro quer continuar sendo presidente do Brasil e conta, para isso, com a reeleição, através das próximas eleições diretas, livres e constitucionais, com voto eletrônico e tudo. Fazer o quê?

É uma sinuca de bico. Esse Brasil que quer Bolsonaro fora do Palácio do Planalto, com ou sem a Paulista lotada, não admite um dos mandamentos mais elementares da democracia: para tirar o presidente que você condena, é preciso derrotar sua candidatura na primeira eleição disponível, caso ele seja candidato, e esperar até o último dia do seu mandato para colocar um outro no lugar. Se ele não for candidato, vai ser indispensável, da mesma forma, aguardar o dia 1º de janeiro de 2023 — antes disso, e fora um dificílimo processo de impeachment, não há o que se possa fazer, a não ser virando a mesa. Eis aí a questão real: virar ou não virar a mesa. O clima entre os exércitos anti-Bolsonaro, no momento, é cada vez mais agressivo. A frase mais repetida, ali, é a seguinte: “Não dá para esperar a eleição”. É muito usada, também, a sua irmã gêmea: “O país não aguenta até lá”. Se não querem que o homem fique até o fim do seu mandato legal, imagine-se, então, o pesadelo que estão tendo com a possibilidade de um segundo mandato de quatro anos; seria, na sua maneira de ver o Brasil, pura e simplesmente intolerável. Sendo assim, “não pode” acontecer.

Nunca ocorre a nenhum deles que “a coisa” a fazer é seguir a Constituição

Conclusão, entre as lideranças do Brasil que manda e os seus fiéis: não é possível correr o risco de que Bolsonaro ganhe as eleições de 2022. Como se resolve um embrulho desses? A maneira mais direta, eficiente e garantida é dar um jeito, qualquer jeito, de não deixar que o presidente seja candidato. É esse o começo, o meio e o fim do problema que existe na base de toda a agitação política de hoje. A eleição presidencial não pode ser suspensa por uma liminar do STF, nem por um embargo-de-qualquer-coisa apresentado pelo PT-Psol-etc. — ou, pelo menos, ninguém está propondo algo assim até agora. Nesse caso, é simples: se tem eleição, não pode ter Bolsonaro. É o que se diz todos os dias, hoje, na confederação nacional antibolsonarista. Não com essas palavras, é claro — afinal, o catecismo mais repetido ali dentro, e dali para fora, é que a democracia está acima de tudo. Mas para haver democracia no Brasil é indispensável eliminar o presidente que foi eleito, dizem eles. A democracia tem de estar acima da democracia, entende? Se não entendeu, tente o seguinte: a democracia é tão importante, mas tão importante, que em certas horas é preciso ignorar as regras democráticas para garantir a sua sobrevivência. Afinal, não se pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos, não é mesmo? Não se pode levar tudo a ferro e fogo, na letra exata da lei, não é mesmo? Etc. etc. etc. O pensamento é esse, e nenhum outro.

As forças que não reconhecem o direito constitucional de Bolsonaro à Presidência da República, nem hoje e nem nunca, são a essência do que se chama de elites — os grupos, tribos e seitas que sempre controlaram, de um jeito ou de outro, o poder público no Brasil, através da privatização do seu aparelho, da sua autoridade e dos seus recursos. O Estado brasileiro não é público; é privado, e os seus proprietários são a minoria de magnatas que realmente toma as decisões do dia a dia, sempre, seja lá quem estiver no governo. Sabe-se perfeitamente quem são. É o Brasil das castas do alto funcionalismo, das empreiteiras de obras públicas e da turma que tem férias de dois meses por ano, estabilidade no emprego e aposentadoria com salário integral. É o mundo de quem controla as corporações, as federações e as confederações. São os empresários que tinham “acesso” ao governo — hoje estressados por não estarem mais no centro das decisões, deslocados pelo comércio eletrônico, as empresas de tecnologia de ponta e o agronegócio conectado aos sistemas mundiais de produção. São os banqueiros — alguns deles, imaginem só, já se dizem de “esquerda”. É a mídia. São os donos das universidades públicas, que ficam com a maior das verbas da educação. São os que influem no Orçamento. São os intelectuais, os artistas e a alta classe média que se sente culpada por ser branca, pagar escola particular e andar de SUV. É o mundo do privilégio. É o oposto do mundo do trabalho. Não há um único pobre aí dentro, nem um. Nunca houve, nem vai haver.

É essa a gente que acha que “o Brasil não aguenta” — a turma do “é preciso achar uma solução”, do “alguém tem de fazer alguma coisa” e por aí afora. Nunca ocorre a nenhum deles que “a coisa” a fazer — a única coisa a fazer — é seguir a Constituição, e não anular com truques legais os votos de 58 milhões de brasileiros. Não lhes ocorre, também, que a maneira correta de substituir presidentes é a eleição livre, e não o impeachment — a solução de que mais gostam, tanto que, dos cinco presidentes eleitos neste país por eleições diretas nos últimos 30 anos, dois foram depostos, Collor e Dilma, e um terceiro, Bolsonaro, está sendo bombardeado por pedidos de impeachment desde o dia em que entrou no Palácio do Planalto. Pode ser normal um negócio desses?

O STF parece ter decidido que respeitar a lei terá as piores consequências

O bonito dessa história toda é que os inimigos objetivos da democracia e da obediência às suas regras para resolver conflitos são, justamente, os que estão em estado de excitação extrema em “defesa da democracia” e contra os “atos antidemocráticos” — a começar pelo STF, que deveria ser o defensor número 1 da Constituição e hoje se transformou num comitê de salvação pública, com poderes que nenhum órgão do governo brasileiro teve desde o Ato Institucional Número 5. Como pensavam os governos militares, a democracia, na visão dos 11 ministros que estão hoje no Supremo, é “relativa”. Ou, mais precisamente, a obrigação do STF não é interpretar as leis, tentando fazê-las fiéis ao que o legislador aprovou — e sim aplicar a lei segundo as “consequências” que ela pode causar. A lei, pelo ponto de vista predominante no STF atual, não é mais o que está escrito — é a consequência, boa ou má, melhor ou pior, que a sua aplicação vai trazer. A consequência é ruim? Então não se aplica a lei — ou, em português claro, os fins justificam os meios. Como os ministros deram a si próprios o direito de decidir quais são as consequências desejáveis e quais as que não são, e ninguém fala nada, a lei passou a ser o que eles querem. No caso de Bolsonaro, o STF parece ter decidido que respeitar a lei terá as piores consequências possíveis; dane-se a lei, portanto.

Não é isso o que se entende por Estado de direito, e nem por equilíbrio na vida política. Em ambas as situações, a solução para remover um governo ruim é fazer eleição e colocar outro no seu lugar. Ou não é? Talvez não seja. Eleições, argumenta-se há muito tempo, não são um sistema eficaz para escolher presidentes. É claro: na eleição ganha quem teve mais voto, e não quem é o melhor. Ou, de outra forma: é a população que decide quem é o melhor, e a população pode errar; talvez erre na maioria das vezes. No Brasil, por exemplo, o eleitorado é notoriamente ruim para escolher presidente. Nas seis eleições realizadas nos últimos 60 anos, foi capaz de eleger Jânio Quadros, Fernando Collor, Dilma Rousseff e Jair Bolsonaro — para não falar em Lula. Alguém acha que um sistema que produz esses resultados está funcionando direito? Alguém acha que um eleitorado em que dois terços dos eleitores não têm capacidade para entender direito um texto em português ou executar as quatro operações matemáticas elementares está qualificado para eleger o presidente da República?

Tudo bem, mas eleições em que todos votam, inclusive os analfabetos e menores de idade, são o que a Constituição manda fazer. Não há outro jeito. Bolsonaro é ruim, segundo o Brasil da elite, da esquerda e dos jornalistas? Então é preciso arrumar um candidato capaz de ter mais votos que ele nas eleições do ano que vem. Ou, então, reunir dois terços dos votos dos deputados federais (342 em 513) e dos senadores (54 em 81) para aprovar o impeachment. Não há outra saída, dentro da democracia — não importa a quantidade de gente que foi para a rua no 7 de Setembro e que pode voltar nas próximas manifestações, e nem o governo paralelo do ministro Moraes e seus companheiros.

Título e Texto: J. R. Guzzo, revista OESTE, nº 77, 10-9-2021

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