sábado, 2 de novembro de 2019

Desabafo a propósito da direita, ou de algumas direitas

Para o Estado, e para a lei, não deveria haver senão cidadãos. É absurdo criticar as “identidades” sem compreender a sua trafulhice intrínseca, ou contrapondo quadros “identitários” similares.

Alberto Gonçalves

Em Julho passado, aquando do lançamento de uma seleção de crónicas que publiquei (“O Estado a que Isto Chegou”, ed. Alêtheia, 392 pág. – uma obra-prima sob diversos pontos de vista, sobretudo o meu), um senhor de certa idade aproximou-se de mim e acusou-me de ter medo de me afirmar de direita. Informei-o de que o medo não tinha nada a ver com o assunto, e tentei explicar-lhe o que é que tinha. O senhor de certa idade não me quis ouvir. Conto, agora, com os leitores do Observador para me quererem ler.

Não me digo de direita por várias razões. A primeira é superficial: soa parolo, a parolice daqueles sujeitos que se dizem do centro, da Confraria do Rabanete ou, pior ainda, de esquerda. A autodefinição é um exercício intrinsecamente pateta. 

A segunda razão é perceber que existe uma data de direitas com apetites contrários entre si e, para o que aqui importa, contrários aos meus. Dou um exemplo. Há oito dias, o assessor da deputada do Livre penetrou a Assembleia da República vestido com saiote e peúgas à vista. Esta mera rábula, que pretendia mostrar irreverência e apenas mostrou o imenso vazio naquelas cabecitas, desencadeou em inúmeras almas assumidamente de direita uma indignação monstra. Umas lamentaram o desrespeito pelo parlamento, na suposição de que é possível desrespeitar mais uma casa que alberga negacionistas e entusiastas do estalinismo. Outras lamentaram uma suposta libertinagem, sem notarem que, apesar do nome e à semelhança dos restantes bandos de extrema-esquerda, o Livre é reduto de beatos e pregadores, unicamente especializados em proibir, perseguir e punir o próximo. À conta de tamanha sensibilidade, o moralismo infantil do Livre passou por ousado e o rústico do saiote já anda pelos programas das manhãs televisivas, a aproveitar a fama.

Um dos problemas da direita, ou o problema de algumas direitas, é levar à letra as “causas” da esquerda – e em seguida enfurecer-se com as ditas. Desde logo, convém arranjar paciência e explicar, pela enésima vez, que o chamado “marxismo cultural” não se preocupa com o alegado objeto das “causas”, e sim com a capacidade de arregimentar tropas.

O Livre, o BE, o PCP e o PAN, com focos ocasionalmente distintos, não sofrem de facto com as desditas dos homossexuais, dos pobres, das mulheres, das minorias éticas, das senhoras que abortam, dos doentes terminais ou dos bichinhos. Aliás, de acordo com as circunstâncias e a geografia, não faltam situações em que os partidos em questão defendem regimes particularmente empenhados em espezinhar os grupos acima citados. Estes, os objetos das “causas”, são simples desculpas para abrir pontos de conflito em volta de matérias complicadas e tratadas à bruta, ou de complicações imaginárias tratadas como autênticas. No processo, tão sofisticado quanto uma bigorna e “fundamentado” nas oposições nós/eles, ou bonzinhos/malvados, conquistam-se aficionados e, no lado oposto da trincheira, definem-se inimigos. A esquerda é exímia nestas manigâncias primárias. E a direita, ou algumas direitas, é exímia em morder o isco.

A direita, ou algumas direitas, confunde a cretinice das “políticas identitárias” e o grotesco culto da “vítima” com os anônimos que, sem querer, são usados em tais estratégias de poder – e abomina tudo. Porém, nem todos os africanos querem subir na vida à custa da “carta racial” nem todos os gays elevam as preferências sexuais em estatuto. O perigo das “causas” não são os pretextos de que se servem, mas o método das “causas”, que é dividir, e o objetivo das “causas”, que é reinar. As “causas” visam a nacionalização das vontades, um sonho totalitário a que importaria resistir com lucidez.

Resistir sem lucidez é julgar contrariar as “causas” enquanto se concorre para o mesmo fim: a supressão das liberdades. Dito de maneira diferente, faz sentido promover a liberdade económica e desconfiar das restantes? Eu acho que não. A direita, ou algumas direitas, acha que sim, não importa muito se por convicção se por equívoco. E nisso, ao acautelar a propriedade e desprezar os comportamentos dissonantes da “tradição”, a direita, ou algumas direitas, não se distingue da direita, ou de algumas direitas, que se alia pontualmente à esquerda para abraçar as “causas”, e tomá-las pelo seu valor facial. Ambas acabam a desprezar o indivíduo em favor de coletivos em última instância irrelevantes. No mundo, há mulheres e homens, homo e heterossexuais, pretos e brancos, ricos e pobres, crentes e ateus. Para o Estado, e para a lei, não deveria haver senão cidadãos. É absurdo criticar as “identidades” sem compreender a sua trafulhice intrínseca, ou contrapondo quadros “identitários” similares. Racionalmente, em que é que a doutrinação nacionalista se distingue do catecismo LGBT?

Em suma, eu seria de direita se a direita fosse sempre o exato oposto do que a esquerda é: um projeto de avanço e conquista e domínio através da eliminação da esfera privada, a começar pelos negócios e a terminar na cama. A direita, ou algumas direitas, devia combater o que a esquerda realmente quer e não o que a esquerda finge querer.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador, 2-11-2019

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