Aparecido Raimundo de Souza
O PAI CHEGA CORRENDO e
entra na sala, quase aos trambolhões. Ao ver o filho grudado na
televisão dirige-se a ele e indaga, curioso:
— O que você está assistindo?
— Pica-Pau.
— Bota um pouquinho nas Meninas Superpoderosas.
— Eu não gosto da Florzinha, nem da Lindinha nem da Docinho.
— Não gosta?
— Na verdade, odeio de morte as três.
— Então, ao menos, vamos ver um pouco o Quarteto Fantástico.
— Pirou, pai?
— OK. Que tal Yin Yang Yo?
— Qual é, pai? Assim o senhor me racha a cara. Por que não compra outro
aparelho e bota lá no seu quarto junto com o da mamãe?
— Filho, no quarto que divido com a sua mãe, colocar outra? Vai ser uma
loucura.
— Por que uma loucura?
— Sua mãe gosta de novelas. Eu
odeio novelas.
— Mesmo assim... Compra outro aparelho e coloca aqui na varanda, ou no
quarto de hóspedes. O apartamento tem quatro quartos...
— Sem chances. Um aparelho aqui na sala e mais um no quarto de casal?
— O que é que tem? Não desfrutamos aqui de um montão de coisas em
duplicata? Duas geladeiras, dois freezers, duas máquinas de lavar, duas camas
de casal, duas empregadas, dois carros na garagem, dois computadores, dois
relógios?
— Isso é diferente, filho, aliás, algumas coisas são indispensáveis.
— O senhor não acha indispensável querer que eu tire do Pica-Pau para ir
ver outro desenho só porque o senhor quer?
— Vou fingir que não ouvi. Esclareça uma dúvida, mocinho: já ouviu falar
dos Padrinhos Mágicos?
— Muito. Até demais. Por falar neles, o senhor se parece bastante com o
vilão da história.
— Que história? Que vilão?
— Falo de Timmy Turner, um garoto muito legal. Ele é um dos personagens dos
Padrinhos... Tem 10 anos, a mesma idade
que eu. Os adultos, em volta dele (assim como o senhor e a mamãe), vivem o
tempo todo tentando dominar a sua vida. “Faça isso, não faça aquilo, vista
azul, dispense o branco, coma isso, não coma aquilo”. Existe também uma babá
chamada Vicky, que é como se fosse um
terror à parte. Todos infernizam a vida do pobre Timmy. Porém, a ajuda para a
sua desdita...
— Calma ai. Não entendi. Para sua o quê? Quer por favor repetir?
— Desdita, pai. Desdita.
— O que é desdita?
— Encheção de saco. Azaração. Blá, blá, blá. A salvação para o infeliz
vem de Cosme e Wanda, que são seus Padrinhos Mágicos. Se ao menos eu pudesse
contar com uma dupla igual a eles...
O pai do moleque se prostra, boquiaberto:
— O que faria?
— Pediria para me tornar invisível...
— E para que, criatura de Deus?
— Para não ser enxergado. Eu ficaria, por exemplo, aqui sentado, as
pernas para o ar, tomando refrigerante, no meu colo uma baciada de pipocas e
curtindo meus desenhos preferidos sem vivalma perturbando as idéias, ou
azarando...
O pai pensa em partir para cima do petulante moleque, aplicar-lhe uns
bons tabefes, contudo, tenta parecer calmo e tranquilo. A resposta malcriada do
gurí lhe coloca os nervos em frangalhos, porém, conta até vinte e pondera a sua
autoridade:
— Olha aqui, seu engraçadinho. Se eu passasse por aqui e a televisão
estivesse ligada e eu não visse ninguém, desligaria.
O moleque, sem papas na língua, rebate, na lata:
— De jeito nenhum. Se eu fosse invisível, o senhor não teria a menor
chance...
— Chega de conversa, seu respondão. Para seu quarto. Está de castigo.
— Sabe o que eu vou fazer, pai?
— Me obedecer, nada mais. Quarto.
— Tudo bem, eu vou, mas antes eu irei lá no oitavo andar e buscarei a
Turma do Bairro. O chefão mora aqui no nosso prédio.
— Turma do bairro, que turma do bairro?
— São crianças na mesma faixa de idade que eu.
— E dai, o que tem a ver os fundilhos com as calças?
— Sabe o que elas possuem em comum comigo?
— Não faço a menor idéia.
— Elas se rebelam contra as regras tirânicas dos mais velhos, como acabei
de fazer agora.
— Regras tirânicas, mocinho?
— Sim senhor. Tirânicas.
— Para o quarto. Rápido. Ande. Quartooooo...
O garoto ensaia alguns passos em direção aos seus aposentos, contudo,
estanca no corredor:
— Posso, ao menos, ver o finalzinho do Pica-Pau?
— Não.
— Deixa, pai.
— Já disse: não. ENE... A... Ó... TIL.
— Só hoje...
— Não, não, não...
— Compra um aparelho de televisão e me dá de presente. Aí eu fico no meu
quarto e...
— Deixa de estudar. Devo lembrar que as suas notas estão péssimas. Vi seu
boletim. Uma vergonha, uma vergonha. Cinco em matémática, um virgula dois em
redação...
— Poxa, pai, magoei!
— Quarto.
— Pai, me escuta: eu prometo estudar, ficar menos tempo na frente da
televisão e o melhor, libero a TV aqui da sala para o senhor se esbaldar
com Grotescologia.
Risos.
— Sê besta, seu fedelho! Prefiro Backyardigans. Agora, pela última vez. —
Q u a r t o.
O pequeno vira as costas e deixa definitivamente a sala, aos prantos. O
pai corre até a cozinha, pede a uma das serviçais que providencie batatas
fritas, enquanto ele, abre uma latinha de cerveja e retorna à sala. Se apodera,
então, do controle remoto e muda, ligeiro, para o canal onde está sendo exibido
as Meninas Superpoderosas.
Neste exato momento, acontece um imprevisto. Uma ocorrência inevitável.
As três gatinhas da série animada, aparecem na tela enorme da Sansung
Q900R, de 65 polegadas e congelam a
imagem, como se fosse a coisa mais corriqueira do mundo. Em gestos espavoridos, mostram as línguas ao
sujeito que, assustado, deixa cair a bebida que se esparrama no carpete. Ato
contínuo, mandam uma banana bem grande para o boquiaberto cidadão que se
esgoela num grito de terror e espanto. Em seguida, o trio sai voando de dentro
do aparelho e ganha a janela da sala escancarada para os confins da tarde que
se avizinha no horizonte.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de Vila
Velha, no Espírito Santo. 2-6-2020
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