terça-feira, 12 de novembro de 2019

Cruzado no queixo do povo

Péricles Capanema

Hoje quero ser todo mundo. Sei não, anda sumido todo mundo, precisa de quando em vez aparecer e dar o ar da graça. Areja, todo mundo não é romântico, fantasia pouco, tem os pés no chão.


O baiano (soteropolitano) Acelino “Popó” Freitas foi tetracampeão mundial de boxe em duas categorias. Grande carreira no esporte. A seguir, tentou outro ringue, a política e nele se deu mal. Em 2010, pelo PRB elegeu-se suplente de deputado federal com 60.216 votos — exerceu o mandato. Em 2014, tentou de novo, perdeu a eleição, obteve 23.017 votos. Em 2018, outra derrota, não passou dos 4.884 votos. Tomou do eleitorado um direto no queixo.

Desiludiu-se com a política; hoje afirma: “A população é muito corrupta. Ela consegue ser até mais corrupta que o próprio político. Ela só quer o seu voto se você der uma dentadura, uma cesta básica, um material de construção, bola, colete. Não tinha dinheiro. Sem dinheiro, você não vai. ‘E aí, vai me dar quanto pra gente conseguir um monte de voto aqui no bairro?’. ‘Não tenho’, eu respondia. ‘Então, tchau. Tem outro aqui fazendo oferta pra gente’”.

Em português sofrível, Popó explica o dia a dia do político normal — e ele era deputado federal, imagine o deputado estadual e o vereador: “A minha chateação é porque eu percebi que ser político é você ser errado. […] Se eu fizesse tudo errado, ou eu estava preso, ou ganhava a reeleição. […] Só para Salvador eu mandei quase R$ 7 milhões para Neto de emenda. E com projetos, para academias sociais debaixo de viadutos, construção de quadras. Esse projeto eu destinei alguns projetos para a Rótula do Abacaxi, para todos esses novos viadutos. Eu destinei alguns projetos já com verba, já com tudo 3D para a Secretaria de Esportes. E não saiu. E o estado que mais dá títulos à Bahia é o boxe. Fiz como deputado federal mais de 70 projetos de lei […] E quando as pessoas vinham para me ajudar… eu dizia: ‘Eu faço esse campo e um posto de saúde e em contrapartida eu quero que vocês me apoiem.’ Aí o pessoal dizia: ‘Não, eu quero que você banque mais de 40 pessoas por mês com mais de R$ 1 mil de salário’. A própria população se torna mais corrupta que o deputado. E aí eu senti na pele o que é ser político, o que é fazer política”.

Exposição um tanto confusa, mas dá para entender. Popó compreensivelmente queria votos como retribuição por ter conseguido o dinheiro para melhorias na Bahia. Precisava deles para continuar na política. Todo mundo sabe, deputado age assim, cabem nos dedos da mão as exceções. Os eleitores exigiam mais. Popó não tinha mais. Perdeu. Resumiu o que todo mundo sabe, sem dinheiro você não vai.

Como sem dinheiro a coisa não vai, uma forma para ir é arrancar da viúva a bufunfa para as campanhas. Dinheiro público, autorizado, tudo legal. Todo mundo deblatera — e com razão — contra as verbas públicas bilionárias jorrando no bolso dos partidos (Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos e Fundo Especial de Financiamento de Campanha). São verbas para campanhas de autopromoção, entre outras necessidades prementes, retiradas da construção de postos de saúde e escolas.

Não bastam os dois fundos referidos. Saem outras verbas para campanhas dos cargos em comissão, e aí é preciso não esquecer as rachadinhas. Os titulares dos cargos em comissão, além de ter algumas vezes de rachar o salário com o eleito, muitas vezes são apenas cabos eleitorais.

Única função: cabos eleitorais por quatro anos pagos com dinheiro público, milhares Brasil afora. Fabrício Queiroz, do ramo, há pouco foi gravado dizendo: “Tem mais de 500 cargos lá na Câmara, no Senado. Pode indicar para qualquer comissão, alguma coisa, sem vincular a eles em nada, em nada. Vinte continho para a gente caía bem […] Um salariozinho bom desses aí, cara, para a gente que é pai de família, caía igual a uma uva”.

Sem dinheiro, você não vai, fica parado, constatou o boxeador nocauteado em ringue dominado por profissionais de outro esporte. Tem ainda tem o caixa 2. Todo mundo sabe, muitos doadores não querem aparecer nas listas oficiais, mas aceitam ajudar. “Toma aqui, leva, boa sorte, não quero recibo, assim tá bão, senão você me complica”. E o candidato precisando de dinheiro, leva. É raro o político que não tem o caixa 2.

Muita gente de grande qualificação profissional fica longe da política por causa dos vícios acima apontados. Com isso privam o Brasil das lues de seus talentos, deixando o campo livre para aventureiros, arrivistas, inescrupulosos e nulidades — nossos legisladores e governantes em geral, com as exceções que a praxe comanda. Cheguei até aqui e lembro: — todo mundo sabe que é assim, todo mundo finge que não sabe que é assim.

Quereria destacar hoje apenas um ponto. Debate-se continuamente reforma política e reforma eleitoral — todo mundo fala nelas. Parte da corrupção no mundo político vem dos custos altíssimos das campanhas eleitorais. É imperioso baixá-los. Os custos da monarquia inglesa são dinheiro de pinga (e lá atraem milhões de turistas) se comparados com os custos das campanhas eleitorais da democracia brasileira, e daqui os turistas fogem espavoridos.

Proponho medida factível para gastar menos dinheiro. O voto facultativo baratearia as campanhas. Melhoraria a qualidade da representação. E nada mais democrático que ele. O voto é direito do eleitor. Quer exercitá-lo, vota. Não quer, fica em casa. Sem penalidades. Nada mais civilizado. Os países mais democráticos e civilizados têm voto facultativo. Temos voto facultativo, entre outros países, nos Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Espanha, Canadá. Voto obrigatório: Bolívia, Honduras, Panamá, República Democrática do Congo, Egito, Tailândia, Líbia. Nossa companhia. Esse atraso é mais um fruto venenoso da Constituição de 1988, está na hora de acabar com tal entulho autoritário, retrocesso que entrava a autêntica representação popular.

Por que os políticos fogem do voto facultativo? Razão principal e simples, poria a nu a farsa da democracia brasileira. O mundo político brasileiro está assentado sobre uma fraude, sua popularidade, decorrente de atávico romantismo, que falseia desde décadas a realidade. As gigantescas votações, creio, cairiam em aproximadamente 80%, ficaria claro que a população vive de costas para o mencionado mundo político. Mas, ao invés do engano, trapaça e turbação, hoje imperantes, como ótimo começo e fundamento da vida pública teríamos verdade, autenticidade e transparência, condições de democracia real e não a contrafação dela que nos empurram goela abaixo. Daí viriam debates mais qualificados, menos demagogia, eleitos com melhores condições para servir ao bem comum. E então o povo padeceria menos da demagogia que hoje o engoda e infelicita. Meu pedido, comecemos por aí, com a introdução do voto facultativo, passo, ainda que modesto, na direção certa. Como todo mundo, contudo, tenho poucas esperanças de ser atendido. Como todo mundo, vou continuar levando cruzado no queixo.
Título e Texto: Péricles Capanema, ABIM, 11-11-2019

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