É esta: quantos anos mais vamos assistir a Francisco Louçã mentir, acusar e insinuar sem nada provar perante o sorrisinho cúmplice dos jornalistas?
Helena Matos
O programa na SIC Notícias estava a acabar. Francisco Louçã [foto] com o ar visivelmente satisfeito de quem acha que vai fazer uma revelação que comprova simultaneamente a inteligência própria e a estupidez alheia declara: “Uma coisa que eu tinha muita curiosidade de saber que era se alguns setores de direita acreditam mesmo nas suas lendas mais sanguinolentas. E uma delas é que os comunistas comem criancinhas.” O resto já se sabe: na SICN passa o excerto de um vídeo em que na assembleia municipal de Lisboa, a deputada do PPM, Aline Beuvink, referiu “o mito com fundo de verdade de que os comunistas comiam crianças”.
Louçã, um dos políticos mais
antigos de Portugal, entra-nos há anos pela casa dentro com aquele ar
insuportável de inquisidor, graças a uma comunicação social que o ouviu muito e
lhe perguntou pouco. Agora escutam-no com o fervor devido a um ativista de
esquerda (o equivalente à direita chama-se ultra e é visto como um potencial
criminoso), o respeito inerente ao estatuto de conselheiro de Estado e o temor
de não ficarem bem-vistos por quem neste país define o certo e o errado.
Mas voltemos às palavras de
Louçã: “Uma coisa que eu tinha muita curiosidade de saber que era se alguns
setores de direita acreditam mesmo nas suas lendas mais sanguinolentas.”
(Os risos enfáticos do jornalista ficam para depois).
Louçã, o sábio, Louçã o culto
olha para a direita como quem contempla um objeto de estudo. Quiçá um erro na
evolução. Louçã até gostava de saber – porque Louçã quer sempre saber mais – se
alguns sectores de direita acreditam mesmo nas suas lendas mais sanguinolentas.
Que lendas são essas? No caso concreto as denúncias sobre os extremos a que a
fome imposta pelas políticas de Estaline levaram a população da Ucrânia. Mas o
caso é muito mais vasto pois tratar como mentiras as denúncias às condições de
vida nos países comunistas é uma táctica tão antiga quanto o comunismo.
Escreveu-se e escreve-se muito a defender o comunismo ou as alternativas como agora lhe chamam. Mas esquecemos que uma parte da defesa dos modelos comunistas, revolucionários, alternativos… passou e passa por denegrir aqueles que relataram a realidade do quotidiano nesses regimes. Aquilo que Louçã agora designa como “lendas mais sanguinolentas” foi durante décadas apelidado como mentiras propaladas pela CIA, textos a soldo do fascismo e epítetos quejandos.
A censura, os boicotes à
edição e os ataques ao caráter dos seus autores foram o destino de muitos livros
que denunciaram os crimes do comunismo: desde grandes obras como O
Arquipélago de Gulag, ou O Livro Negro do Comunismo aos
simples relatos pessoais como por Francisco Ferreira em obras como “26 ANOS
NA UNIÃO SOVIÉTICA: NOTAS DE EXÍLIO DO «CHICO DA C.U.F.»” encontramos
esta táctica. Recordo que o boicote à publicação de O Arquipélago de
Gulag em Portugal acabou a ser discutido no parlamento.
Pode argumentar-se: tudo isto
é passado. Os factos da polémica sim, a táctica não. Basta atentar na forma
como foram perseguidos aqueles que denunciaram o papel da China na ocultação do
COVID para o perceber. Todos os dias a pretexto do negacionismo da pandemia, do
discurso do ódio ou de outra subjetividade qualquer apagam-se páginas nas redes
sociais, excluem-se comentários, diaboliza-se quem tem uma posição divergente.
A indignação com a má-fé de
Louçã sobre o Holodomor é agora possível, mas apenas porque o Holodomor se
tornou História. Exprimir indignação com a má-fé de Louçã na política é outro
assunto. E bem mais complexo, porque implica ir contra a linha político-editorial
vigente. Essa linha que traduz esquerda por solidariedade e justiça social e
direita por exploração e injustiça. Essa linha que agora definiu que o racismo
contra os brancos é bom. Essa linha que estabeleceu que o muro na fronteira
entre o México e os EUA é o muro construído por Trump…
Por muito que tal nos custe
admitir, se Gareth Jones e Walter Duranty voltassem aos dias de hoje, os seus
destinos profissionais não seriam muito diferentes. Recordo que Walter Duranty
foi correspondente do New York Times na URSS entre 1922 e
1936. As suas reportagens sobre o que considerava serem os extraordinários
sucessos económicos e agrícolas daquele país valeram-lhe o prémio Pulitzer em
1932 e muitas palmadas nas costas por parte das autoridades soviéticas e também
das norte-americanas. Quanto a Gareth Jones, que foi dos primeiros jornalistas
a relatar a fome na Ucrânia, continuaria a ter de provar que falava verdade.
Que as lendas mais sanguinolentas de hoje se tornem nos factos incontestados de
amanhã quer também dizer que o nosso silêncio de hoje nos faz cúmplices do que
amanhã se vai chamar crime.
PS. A câmara municipal
de Lisboa prevê construir em Benfica no âmbito do Programa de Renda Acessível
uma torre com 23 andares. Em cada um desses andares existirão 14 apartamentos.
No total nesta torre existirão 322 apartamentos, o que equivale a pelo menos
mil residentes. Qual a posição de cada um dos candidatos à autarquia de Lisboa
sobre este anunciado desastre?
Título e Texto: Helena
Matos, Observador,
4-4-2021, 7h22
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