terça-feira, 15 de março de 2022

[Aparecido rasga o verbo] Rachadura na couraça

Aparecido Raimundo de Souza

QUANDO CONTRATARAM o novo personal trainer para dar aulas para as donzelas e dondocas da academia da Praia da Ponta Grossa, não houve nenhuma aluna que não babasse de amores pelo carismático professor. Algumas sonhavam acordadas quimeras eróticas, enquanto desenvolviam as atividades nas aulas de danças e nos treinos aeróbicos, ao passo que as demais, na natação e na ioga, sem tirarem os olhos do “Mister Músculos” suspiravam ou sentiam pequenas elucubrações no meio das pernas que subiam e desciam pelo corpo até pingarem no chão ou dentro da piscina, transformados em odores pecaminosos. O fato é que Fredie saíra da cidade grande fazia pouco tempo. Cansado da violência urbana do Rio de Janeiro, viera parar em Praia da Ponta Grossa em busca de paz e tranquilidade.

E, de certa forma, achou o que procurava. Embora estivesse acostumado a correr no calçadão de Copacabana, a tomar banho de mar no Arpoador, a beber água de coco gelada no Leme e a malhar nas melhores academias do Leblon e adjacências, o pequeno e pacato balneário de Praia da Ponta Grossa trouxe o campesino almejado, divorciado dos burburinhos nefastos, dos assaltos constantes e das balas perdidas, tão em moda na mais linda e perigosa cidade do Brasil. Fredie se assemelhava muito não com o Freddye Mercury, seu xará. Lembrava mais o Thiago Lacerda de bigode vivendo Giuseppe Garibaldi, quando atuou na Casa das Sete Mulheres. Contudo, as opiniões variavam entre as beldades: umas achavam o professor lavado e escarrado o Murilo Rosa, outras com Keanu Reeves, o sujeito do Matrix.

Se pudessem colocar nele aquelas roupas do filme, com certeza a sua performance traria, à tona, seus poderes e segredos escondidos, sem precisarem usar dos meios eletrônicos e da textura virtual dos computadores mais sofisticados. E “o fenômeno” como se viu apelidado carinhosamente, provocava um “oh” em uníssono, que ressoava pelos quatro cantos da  movimentada academia. Qualquer mulher tirava o chapéu, melhor dizendo, a calcinha, diante daquele tremendo varapau de quase dois metros de altura. Corpo sarado, pele bronzeada, musculoso e sem barriga, o cidadão Fredie, quando descia da sua BMW branca, de teto solar, atraía para si, todos os olhares. Nem as velhinhas ficavam em segundo plano. Pelo contrário. Nessa hora, as idosas recordavam os bons momentos da longeva juventude esvaída.

Diziam, à voz miúda, que Fredie tivera um caso com a Daniella Cicarelli, e meteu na cabeça da apresentadora a ideia de ser atleta. Mesma sapatada, boatavam pelos encontros das “noviças” nos barzinhos espalhados pela Rua da Graça (local de ajuntamento da galera adolescente), que certa vez o enérgico professor foi flagrado beijando a Angélica na boca, antes, claro, do narigudo Luciano Hulk aparecer no pedaço e fungar no cangote da cantora e atriz levado pelas febres doentias do ciúme. Depois veio à tona, uma suposta incursão relâmpago entre as meninas do Rouge tirando umas casquinhas com a Patricia Lissa, ao som do Ragatanga, em último volume, numa suite de um SPA em Águas de Lindoia, interior de São Paulo. Pelo sim, pelo não, o rapaz de vinte e cinco anos tinha lá seus dotes escondidos na manga da camisa. Fredie não se constituia só músculos e pernas: tinha tutano no cérebro. Apreciava os clássicos da literatura, como os romances policiais de Arthur Conan Doyle, Jorge Amado e Ariano Suassuna.

Ouvia Supla, Alceu Valença, Nara Leão e Louis Armstrong. Amava, de paixão, Leonardo DiCaprio, Nicolas Cage e Meryl Streep, passando por Reese Witherspoon e os desenhos do Maguila, o Gorila e o Coelho Pernalonga. No seu pequeno e confortável loft na avenida principal de Praia da Ponta Grossa (de frente para um oceano lindo e maravilhoso), ele colecionava de tudo um pouco, inclusive telas de Albert Eckhout e serigrafias de Alex Vallauri. Sua vidinha corria às mil maravilhas. As alunas o adoravam. Ganhava presentes, flores, mensagens de amor, torpedos pelo celular, propostas de casamento, telefonemas anônimos... até que, numa certa sexta-feira, depois do expediente normal da academia, duas amigas que malhavam juntas voltaram ao prédio. Uma delas havia esquecido, no vestiário, uma mochila com as chaves de casa.

Ao entrarem no saguão, notaram que a porta da recepção estava só encostada e mais: perceberam luz no final do corredor em formato de L, à altura da porta envidraçada que acessava uma das salas de hidromassagens. À medida que avançavam, iam gritando pela Carina e pelo esposo dela, o Marcinho, esses dois proprietários, junto com a irmã dele, a Luciana. Isa, a rapariga que atendia na recepção saía exatamente às oito em ponto e ia embora de moto, com o namorado. Portanto, não poderia ser ela, aquela hora, ali, sozinha. Apesar disso, e a medida em que ganhavam terreno, chamavam por ela, como também pelo Marcinho, pela Carina e Luciana. Todavia, não obtinham nenhum tipo de resposta. A luz acesa, porém, indicava que havia alguém nos fundos. Quem poderia ser?

Um ladrão? Impossível: o lugarejo  calmo demais. A maioria das famílias dormia com as portas e janelas abertas. Ao chegarem à saleta onde ficava o vestiário masculino, as duas deram de testa com uma cena hilariante e patética. Aliás, nojenta e asquerosa. Fredie, completamente sem roupas, jazia, prostrado no chão, de quatro. Ambas as mãos se apoiavam num banco de cimento fixo. O deus grego gemia como um possesso. Por detrás dele, igualmente pelado e alicerçado em palavras ininteligíveis, Marcinho, de flauta engatada na retaguarda do seu funcionário predileto, desfrutava tocando as suas partes pudentes em movimentos de notas cadenciadas. As abelhudas arregalaram as butucas, se beliscaram uma a outra, ao verem a sua barriga dando, em contínuo, tremendas cabeçadas à altura de onde o furisco do consentidor ia sendo furiosamente penetrado.

Os amantes, pelo óbvio da emoção, não atinaram com as enxeridas. Na verdade, os rapazes se faziam meio que alheios para a entrada e, naturalmente abafados pelos sons histéricos que produziam, não perceberam as intrusas no hall que acessava aquele cômodo. O fato, entretanto, é que as senhoritas  presenciaram tudo até o momento exato em que, extasiados, os enrabichados, transpirando em bicas, alcançaram o clímax. Boquiabertas, chocadas e constrangidas pelo que haviam presenciado, trataram de dar o fora, de mansinho, pé ante pé (inclusive por medo de represálias futuras) até que, livres, puderam respirar aliviadas, lá fora, no aconchego de uma padaria oposta à academia. A coisa, porém, não ficou no anonimato. A noticia vazou, sabe-se lá como. Virou fofoca. Um “disse-que-disse” que não teve quem segurasse. Por derradeiro, tomou lugar comum e chegou ao conhecimento dos demais frequentadores e funcionários.

A partir dessa descoberta espantosa e inédita para os anais da pacífica e ordeira cidade, todas as moças do pedaço passaram a olhar para o lindíssimo e bem apessoado professor com outros sentimentos, ou seja, com os esgares de reprovação, de raiva e de profunda tristeza. Afinal de contas, um homenzarrão daqueles, um pedaço de caminho que qualquer mulher gostaria de viajar com a beldade à tiracolo, contrariava todas as regras do bom senso. Além de remar às avessas dos preceitos sociais e, logicamente, por atirar baldes de água fria nos corações apaixonados que se despedaçavam por ele. O que foi visto pelas duas alunas, se espalhou como água morro abaixo, fogo barranca acima. O pior, na verdade aconteceu depois. Carina se separou do Marcinho. Entrou na justiça em face da sociedade da academia.

A ala feminina, em coletivo (ao saber e descobrir que o filho de uma boa mãe não gostava, nem um pouquinho, de ver as pererecas pulando de dentro das minúsculas pecinhas de nylon numa variante de formas e cores), debandou em postura melancólica para a academia concorrente. Resumindo: pelo desequilíbrio insensato de ter se embrenhado no buraco errado, e "piormente", ser pilhado em agravo, com a boca na botija, Marcinho bancarroteou. Quatro meses depois se viu obrigado a vender a academia praticamente por um preço irrisório justamente ao seu maior concorrente. Na separação proposta pela Carina, perdeu para ela, além dos cinquenta por cento da academia, o apartamento onde moravam e os dois carros. E o bonitão do Fredie? O que aconteceu com ele? Ridicularizado por toda a comunidade, não tendo onde meter a sua pose principesca, voltou, de mala e cuia, para o Rio de Janeiro.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, do Rio de Janeiro. 15-3-2022 

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2 comentários:

  1. Juro por tudo quanto é sagrado, fiquei com pena da minha xara Carina. Ainda bem que ela, espertalhona, ficou com os 50% da academia o apê e os dois carros. Essa história de entrar pelo buraco errado... O Fredie deveria ter levado com ele o Marcinho de volta pra o Rio. Besta e tonta, eu, aqui, achei que o desgraçado do professor estava de caso com a secretária Isa, ou com a esposa do proprietário ou com a Luciana. No pior dos mundos, com uma das alunas. Aparecido, como sempre, me surpreendeu, tirando o foco das moças. Fim magnífico e não esperado. A cada dia me surpreende com seus fins trágicos. Além dos parabéns, nota MIL.
    Carina Bratt
    Ca
    em Vila Velha ES

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  2. Aparecido, sempre genial e muito criativo. Adorei o texto. Parabéns!

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