sábado, 30 de abril de 2022

Os tiranos estão de luto

A mídia corporativa odiou que Elon Musk tenha comprado o Twitter porque odeia a ideia de os norte-americanos pensarem por si mesmos

Ana Paula Henkel

Há 245 anos, em 4 de julho de 1776, os termos da Declaração de Independência dos colonos norte-americanos da Coroa Britânica formavam toda a cadeia genética da nação mais livre do mundo. Os ditames do documento acabaram moldando uma sólida Constituição, que, entre apenas 27 emendas, coloca os direitos individuais inalienáveis acima de governantes e seus desejos e paixões políticas que, porventura, possam desvirtuar o rumo republicano de suas administrações.

Montagem: Revista Oeste

As fundações da república norte-americana estão diretamente ligadas ao Iluminismo Europeu dos séculos 17 e 18. Os Pais Fundadores da América mergulharam na obra de filósofos cujas ideias influenciaram a formação do novo país, como o inglês John Locke. Em seu Segundo Tratado Sobre o Governo, Locke identificou que as bases de um governo legítimo ganham autoridade através do consentimento dos governados, e não através das mãos de um monarca. O dever desse governo seria proteger os direitos naturais das pessoas, que são concedidos por Deus, e não por um rei: a vida, a liberdade e a propriedade. Para o filósofo que inspirou homens importantes no Novo Mundo, se o governo falhasse em proteger esses direitos, seus cidadãos teriam o direito de derrubá-lo.

E foi justamente essa ideia que influenciou profundamente Thomas Jefferson ao elaborar a Declaração de Independência, em 1776. A base da teoria de Locke dos direitos naturais se tornou o pano de fundo do qual a Declaração surgiu: “Consideramos essas verdades evidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais a vida, a liberdade e a busca da felicidade”.

Em novembro de 2012, mais de 235 anos após a Declaração de Jefferson, Bono Vox, vocalista e líder da banda irlandesa U2, discursou na Universidade de Georgetown sobre a contextualização do que aqueles colonos britânicos na América plantaram e disse: “A América é uma ideia. A Irlanda é um ótimo país, mas não é uma ideia. A Grã-Bretanha é um ótimo país, mas não é uma ideia. É assim que vemos vocês (os norte-americanos) em todo o mundo, como uma das maiores ideias da história da humanidade”.

Bono está certo. A América é uma ideia. A frase pode parecer simples e o conceito pode parecer vago para quem olha de fora para os Estados Unidos, mas não enxerga o que o país representa para a civilização ocidental. Até Bono, um social-democrata, entende o que a nação mais próspera do mundo representa. Uma ideia. E uma ideia que é maciçamente fundada em um pilar sagrado para os norte-americanos, a liberdade.

A Primeira Emenda

E é exatamente na Primeira Emenda da Constituição norte-americana que a liberdade para os norte-americanos, que migraram para o Novo Mundo fugindo da perseguição religiosa, é protegida contra qualquer tipo de tirania. É na Primeira Emenda, parte da Declaração dos Direitos dos Estados Unidos e adotada em dezembro de 1791, que está o impedimento, textualmente, ao Congresso norte-americano de infringir seis direitos fundamentais: proibir o livre exercício da religião; limitar a liberdade de expressão, de imprensa, do direito de livre manifestação pacífica; e limitar o direito de fazer petições ao governo com o intuito de reparar agravos.

No famoso caso Jerry Falwell v. Larry Flynt, de 1987, a Suprema Corte norte-americana afirmou: “No coração da Primeira Emenda está o reconhecimento da importância fundamental do livre fluxo de ideias e opiniões sobre questões de interesse e preocupação pública. A liberdade de falar o que pensamos não é apenas um aspecto da liberdade individual, mas também é essencial para a busca comum da verdade e da vitalidade da sociedade como um todo. Temos, portanto, sido particularmente vigilantes para assegurar que as expressões individuais de ideias permaneçam livres de sanções impostas pelo governo”.

Os norte-americanos acreditam que a melhor forma de se contrapor a um discurso ofensivo é com mais discurso e mais liberdade de expressão

Por mais estranho que possam parecer esses tempos pra lá de orwellianos, a Constituição norte-americana protege até mesmo o discurso mais controverso e ofensivo ao governo e críticas a governantes, legisladores e juízes. A regulamentação sobre essa liberdade existe somente sob certas circunstâncias muito limitadas e restritas. O sistema norte-americano, tão enaltecido por Barrosos e Alexandres no Brasil, é construído em cima da ideia de que o intercâmbio livre e aberto de ideias encoraja a compreensão, promove a busca pela verdade e permite a refutação de falsidades. Isso mesmo, Moraes. Norte-americanos acreditam, e a experiência da nação mostrou, que a melhor forma de se contrapor a um discurso ofensivo não é por meio de regulamentação, mas com mais discurso e mais liberdade de expressão.

Se os últimos anos foram de absoluta afronta à liberdade de expressão, seja para cidadãos, médicos, jornalistas, seja para qualquer um que ousou questionar a bíblia do ministério da verdade sobre vacinas ou eleições, nesta semana o mundo viu o que a esquerda norte-americana e global pensa e quer fazer com essa coisa irritante chamada liberdade de se expressar sem amarras ou algoritmos artificialmente viciados em suprimir as opiniões de um lado do espectro político-ideológico.

A defesa de ideias

Embora a maioria dos norte-americanos não se importe com o Twitter, a compra da rede social pelo bilionário Elon Musk expôs o que os novos stalinistas querem para a liberdade de expressão — ou para o controle da liberdade de expressão, para ser mais exata. Os hábitos e os exageros da rede social mais ampla de nossa sociedade significam que o controle dela ainda importa muito. O Twitter ainda é onde grande parte das mensagens da mídia corporativa é elaborada e aprimorada; onde pensamentos e ideias que se desviam da classe dominante são suprimidos; e onde as multidões ávidas por cancelamentos e comandadas pela esquerda são “empoderadas” e, portanto, capazes de liderar as elites empresariais e políticas da América.

O curioso é que os antigos progressistas sempre envolveram as defesas de suas ideias em torno dos princípios da Primeira Emenda norte-americana. Quase todas as causas liberais foram formuladas nos termos da quase absoluta liberdade de expressão dessa emenda — seja o direito de gritar obscenidades, ver pornografia ou levar palestrantes controversos para as universidades. Hoje, a esquerda norte-americana trai com vontade e sem timidez esses valores, optando por usar as instituições simpáticas à sua causa para reprimir a dissidência. O mais curioso ainda é que, nesta semana, enquanto aqueles que não têm medo de opiniões dissidentes e da verdade celebravam a liberdade de expressão, o ex-presidente Obama discursava em Stanford pedindo maior supervisão regulatória dos gigantes da mídia social do país porque essa falta de regulação “ameaçou os pilares da democracia em todo o mundo”. Pesando no debate sobre como lidar com a disseminação da desinformação, ele disse que as empresas precisam submeter seus algoritmos ao mesmo tipo de supervisão regulatória que garante a segurança de carros, alimentos e outros produtos de consumo. Em síntese: você jamais saberá o que consumir ou pesquisar, portanto, não se preocupe, o Estado fará isso por você.

Agora, esta não é a primeira vez que os tais progressistas deram as costas às suas crenças. A esquerda norte-americana, nascida no liberalismo clássico e transformada na social-democracia, há tempos abandonou o homem simples e as minorias, e agora vive sua plenitude nos casamentos com os grandes negócios, nos esportes, em Hollywood e na mídia. E esses realinhamentos ideológicos muitas vezes coincidiram com a transformação dessas instituições-chave, hoje usadas como ferramentas importantes na doutrinação cega e, claro, na manipulação de notícias.

Embora seja difícil dizer para onde vão os esforços bipartidários para controlar o Vale do Silício, apesar de que a maior parte das doações de campanha seja feita para o Partido Democrata, é fácil ver como o Twitter se tornou essencial para a Casa Branca e seus amigos. Da promoção de conteúdo útil (leia-se inútil) à supressão de conteúdo prejudicial (leia-se fatos), a rede social fez o possível para se desculpar com os democratas por sua parte na eleição do presidente Donald Trump em 2016 e mostrou que em 2020 nada parecido aconteceria novamente.

A ponta do iceberg

Elon Musk parece pronto para prestar um grande serviço ao povo norte-americano e àqueles que prezam pela liberdade como descrita na Primeira Emenda norte-americana, mas a realidade é que Elon Musk não vai nos salvar. E o motivo é simples: embora o Twitter seja uma ferramenta poderosa para nossa classe dominante — parte de uma importante batalha cultural a ser travada —, isso é apenas uma das muitas lutas, mesmo na frente tecnológica. E cada batalha leva à próxima. A censura nas redes sociais é apenas aquela ponta do iceberg visível para os navios que passam. Sob a superfície, a esquerda está ameaçando o acesso a bancos, empréstimos, servidores, investimentos, serviços de busca e e-mail, serviços de armazenamento de dados, gerenciamentos de firmas e escritório… and counting

Lutar contra isso exigirá ideias inteligentes, trabalho árduo e a vontade de um empreendedor de resistir a uma pressão incrível em todos os aspectos de sua vida. Mas, se aqueles que podem ajudar não trabalham para colocar nossa própria casa em ordem, estamos apenas trocando um oligarca por outro mais inteligente e mais interessado na liberdade. Mais do que isso, nós, pobres mortais fora da fila do pão do bilhão, não vamos chegar a lugar algum.

A batalha de Elon Musk pelo Twitter se tornou uma guerra latente por procuração entre a classe que acha que pode tudo e um povo livre e soberano, uma guerra que transcende os quatro cantos de seu documento de compra da plataforma. É uma disputa sobre quem controla o discurso público e, com ele, quem governa. Nossas elites evidentemente acreditam que, para manter o poder, devem dominar a praça pública digital. O monopólio da narrativa é parte integrante do monopólio do poder. E a ideia de perder algum poder para silenciar pontos de vista opostos nas mídias sociais é aterrorizante para essas pessoas — tão aterrorizante que, em pânico, elas nem percebem que admitiram sua própria gula pelo controle.

A praça pública

Os militantes da imprensa, das plataformas de tecnologia e da política querem controlar o que você acha, e a constante “ameaça à democracia” é o rótulo favorito para manchar qualquer coisa que desafie seu poder. Há alguns anos, o verdadeiro discurso de ódio a ideias e pessoas, profanado por aqueles que não suportam ser questionados ou confrontados, vem se tornando um monstro. E nesta semana o monstro urrou em decibéis acima do normal. Por que estão tão bravos? Porque o monopólio da fala e da informação, a capacidade de controlar o que você acredita, foi quebrado. É necessário, mais uma vez, recorrer à força para fazer você calar a boca. Elon Musk testemunhará a ira da besta e será perseguido por todos os seus tentáculos. Mas não se engane, este não é um ataque a Elon Musk. Este é um ataque a você e ao seu direito de falar livremente, de expressar sua consciência em público. Curiosamente, pela primeira vez, não está funcionando como eles estavam acostumados, e as torres de marfim estão enfurecidas com a praça pública. Eles estão profundamente ameaçados por uma internet livre, e por isso estão em pânico.

Que Musk ameace devolver esse poder para nós, restaurando nosso direito à fala em um dos fóruns mais importantes da praça pública digital, criando um espaço seguro para o discurso crítico de nossos governantes — mesmo que isso seja intolerável para eles. A mídia corporativa odiou que Elon Musk tenha comprado o Twitter porque odeia a ideia de os norte-americanos pensarem por si mesmos. É ótimo ter o homem mais rico do mundo do lado da liberdade. Precisamos da ajuda, mesmo que troquemos momentaneamente um punhado de oligarcas por outro, mas a causa da liberdade também precisa de nós.

Em um comunicado no dia da compra do Twitter, Elon Musk disse o seguinte: “A liberdade de expressão é a base de uma democracia em funcionamento e o Twitter é a praça da cidade digital onde são debatidos assuntos vitais para o futuro da humanidade. Também quero tornar o Twitter melhor do que nunca, aprimorando o produto com novos recursos, tornando os algoritmos de código aberto para aumentar a confiança, derrotando os robôs e autenticando todos os humanos. O Twitter tem um tremendo potencial. Estou ansioso para trabalhar com a empresa e os usuários da comunidade para desbloqueá-lo. Espero que até meus piores críticos permaneçam no Twitter, porque é isso que significa liberdade de expressão”.

A liberdade de expressão é extremamente importante para a civilização. Muitas vezes é difícil saber quem está de que lado diante de tantas mentiras e manipulações, quem são os mocinhos e quem são os bandidos. Mas há um teste muito claro e simples: basta perguntar quem se incomoda com a ideia de que outras pessoas possam falar. Esse é um teste infalível e 100% preciso. Quem não permitiria que outras pessoas falassem ou discordassem? Apenas tiranos. E nesta semana os tiranos estão de luto.

Título e Texto: Ana Paula Henkel, Revista Oeste, nº 110, 29-4-2022

Um comentário:

  1. Concordo totalmente com o texto. Mas além de tudo gostaria de te parabenizar, eu acompanhava esse blog lá por 2010-2011, bateu uma saudade e fui atrás hoje e olha só, você atualiza o blog até hoje! Fico muito feliz por isso, tenho saudade dessa época mais descentralizada da internet em que haviam muitos blogs. Parabéns e ganhou um leitor!

    Felipe

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