A História não engana. Com escassas exceções, onde há tiranos ou aspirantes a tiranos capazes de horrorizar nações “normais”, a esquerda aparece logo a venerá-los. E até dispensa o socialismo estrito
Alberto Gonçalves
Haverá tontinhos convictos da inocência do regime cubano. Mas a maioria, entre os que vemos por aí a exaltar a herança de Fidel, sabe. Eles sabem da opressão, da miséria, da fome, das perseguições, da censura, do racismo, da homofobia, das prisões, dos homicídios e do sangue. Sabem e não se importam. E não se importam porque acham necessário. E acham necessário porque para eles a vida humana é uma abstração secundária face ao que tomam pela realidade fundamental: a defesa de uma ideia a que se convencionou chamar socialismo. Trata-se, claro, do mundo ao contrário, e de uma ironia pesada. A existência – e o sofrimento – das pessoas é para eles descartável, e em larga medida imaginária. Já uma alucinação teórica com resultados comprovadamente catastróficos é a verdade palpável, e a única que lhes interessa.
Assim, eles sabem que a monumental desgraça dos cubanos não deve ao embargo americano, à “situação econômica derivada da pandemia” (juro) ou a qualquer das esfarrapadíssimas desculpas do óbvio: um povo que há sessenta e tal anos caiu nas mãos de uma oligarquia de psicopatas com o inevitável talento para a corrupção. A questão é que eles gostam genuinamente dos psicopatas. Razões? Várias, ou no fundo a mesma. Os psicopatas são marxistas. Os psicopatas são inimigos dos Estados Unidos. Os psicopatas não são uma democracia. Os psicopatas são a negação dos valores que definiram, e convinha que continuassem a definir, o Ocidente. Os psicopatas são psicopatas. E a esquerda, em Portugal representada pelo PCP, o BE e largas porções do atual PS, aprecia psicopatas.
A História não engana. Com
escassas excepções, onde há tiranos ou aspirantes a tiranos capazes de
horrorizar nações “normais”, a esquerda aparece logo a venerá-los. Em rigor, a
esquerda até dispensa o socialismo estrito: seja de que variante forem, os espíritos
totalitários tendem a aproximar-se. Na República de Weimar, os comunistas
consideravam os nazis um aliado tácito contra os sociais-democratas. Na crise
das Falklands, a Argentina protofascista foi nitidamente preferida em
detrimento do Reino Unido da sra. Thatcher. O Iraque de Saddam Hussein passou a
ser visto com simpatia a partir do momento em que, com a invasão do Kuwait,
provocou a reação militar dos EUA. E não consta que o Irão ou Gaza sejam
governados a partir dos escritos de Engels ou Mao. A ideologia é afinal de
somenos: o critério essencial para suscitar a admiração da esquerda é a
ausência de democracia. Se há representatividade e legitimidade, a esquerda
desata de imediato a uivar em prol dos oprimidos. Se há oprimidos a sério, a
esquerda quer que os ditos se lixem e aplaude, nas ruas ou em recato, a
respectiva opressão. É absurdo? Não é por acaso que o absurdo e a esquerda são
sinônimos.
Regressando a Cuba, salvo seja, a brutal hipocrisia da esquerda não sobrevive ao Teste da Jangada. Não é um teste complicado. De um lado, temos um país de onde as pessoas fogem em condições pavorosas da prisão provável e da indigência garantida. Do outro, temos um país que os recebe e lhes permite prosperar de acordo com o seu empenho, a sua habilidade ou a sua sorte. Adivinhem qual o país que a esquerda adora e qual o que a esquerda abomina (para os idiotas terminais, esclareço que o ponto de origem é Havana é o ponto de chegada é Miami – apesar das bazófias, nem idiotas terminais fariam o percurso inverso).
O teste não termina aqui.
Visto que falamos de refugiados, infelizes ao Deus dará que no “contexto” correto
encheriam as manchetes com sentimentalismo, é de presumir que a esquerda
demonstre ao menos um vestígio de apreço pela sociedade que os acolhe e, por
coerência, condene a sociedade que os afugentou. Nada disso. A esquerda detesta
com indisfarçado vigor os cubanos da Flórida, na medida em que a liberdade de
que beneficiam na América torna mais evidente a falta de liberdade em Cuba. Nas
Caraíbas e em toda a parte, o pobre deixa de ser útil para a esquerda quando
deixa de ser pobre. O Teste da Jangada não se limita a revelar hipocrisia:
revela os abismos de selvajaria a que a humanidade pode descer.
Há meses, aproveitei uma
destas crônicas para explicar a um amigo da direita “ecumênica” o motivo pelo
qual não sou amigo de criaturas de esquerda: o ecumenismo não é recíproco. Se
me pedirem para desenvolver, desenvolvo e aplico a cada indivíduo a noção que
alguns sábios do século XX aplicaram coletivamente ao comunismo e ao fascismo:
o totalitarismo não é consequência do sistema, mas o sistema propriamente dito.
É chato tomar café com alguém que, nas condições propícias, não hesitaria em
enfiar-me num calabouço para efeitos pedagógicos. Nas condições vigentes,
comparativamente suaves, não hesitou em exigir que nos fechassem em casa, a mim
e aos restantes portugueses que não integram a oligarquia. E agora prepara-se
para exigir a abolição de direitos a quem, vacinado ou não, resistir ao
apartheid em curso.
A Covid, por exemplo a Covid,
mostrou o que move o esquerdismo se despido do ligeiríssimo verniz social:
proibir, denunciar, castigar, discriminar, afinal desprezar com religioso
fervor os homens e as mulheres reais. Os assassinos que mandam em Cuba não precisam
do verniz nem da Covid: ali, e não tarda aqui, o desprezo é lei. Convinha que
fosse crime. O esquerdismo é um crime de ódio.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
17-7-2021
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