José Manuel
O ano era 1971, o mês, julho e
eu voando para cima e pra baixo os AVROS, com aquele barulho infernal dos dois
turboélices, rosnando em minha cabeça como um teste a longo prazo para ver se a
minha audição aguentaria, e por quantos anos ainda poderia ouvir sem aparelhos!
Não era só aquele baixinho
nervoso e barulhento que incomodava. Havia outro!
O que mais me deixava
incomodado eram aquelas madrugadas infindáveis, sete dias por semana mais uma
reserva e prontidão no meio.
– Alô, sim é José Manuel. Quem
fala?
– Aqui é o Plínio da escala,
Zé Manuel, assim, numa intimidade plena sem que eu a houvesse outorgado em
nenhum momento da minha curta vida de aeronauta.
O sujeito gostava mesmo de
mim, e como ninguém dava o telefone, pois não poderia ser obrigatório ele arrumou
um jeito de conseguir o meu.
Daí para a frente foi só
bullying comigo o tempo todo, durante os próximos 10 "dez" anos!!!
Acabou em 81. Depois eu conto!
– Amanhã, você tem uma Conexão
para São Paulo com decolagem prevista para as 6h e condução na tua casa às
4h30.
Aquilo se repetia dia sim
outro também e passei a odiar aquele telefone preto e o cara do outro lado da
linha.
Aquele recadinho, significava acordar às 3h30, fazer barba, tomar banho, café e ficar dormindo em pé na portaria do meu prédio, de uniforme até que aquela linda kombi azul e branca freasse aos meus pés, enquanto o planeta inteiro ainda dormia!
Naquela época, era escolher
entre vida social ou o emprego. Nada mais do que isso.
Andei tanto de madrugada
naquelas kombis, que hoje em dia, 50 anos depois tenho uma na minha garagem,
por hobby de colecionador e para não me esquecer do... Plínio!
Verdade... é só perguntar ao
Fernando Vieira Dutra, que ele confirma.
Aliás o meu trauma foi tamanho, que tive duas: a primeira, linda, era americana até com ar-condicionado que comprei do Comandante Marcelo Branco, (in memoriam), e marido da Gláucia, lá pelo ano de 85. Depois vendi para o João Nepomuceno que não largava do meu pé querendo aquela kombi a todo o custo.
Em 97, a Volkswagen lançou
aqui no Brasil, vinda do México a Carat com a porta de correr igual à primeira
72 amarela e eu morrendo de saudades da kombi que havia vendido, e... do
Plínio, comprei a dita cuja, branca. Está aqui na minha garagem.
E foi num dito bullying
desses, gentilmente convidado para uma ponte-aérea sub-madrugada, que por
incrível que pareça ganhei na loteria, o meu passaporte para umas férias
maravilhosas.
O voo, era uma ponte
SDU/BHZ/SDU e lá fui eu cumprir a minha sina de mais uma das muitas "Dawn
Pool flight".
Voo tranquilo para BHZ, uma
hora de aeroporto na Pampulha e novo embarque, quando vejo na fila, uma garota
muito bonita acompanhada de uma senhora. Era francesa e estava acompanhada de
sua avó brasileira, vindas de Ouro Preto, onde a avó havia residido.
Durante o voo, nossos olhares
eram tantos que consegui esquecer tanto o Plínio, como o ódio que tinha dele,
foi se transformando em amor fraterno!
Num dado momento vi que ela se
levantava em direção à Galley onde eu estava, para ir ao toalete.
Passando por mim deu um
"Bonjour" tão “sussurrante e chaud" que quase cai dentro do
porão traseiro do Avro!!
Bom, daí para a frente até
chegar ao Santos Dumont, aquele AVRO num passe de mágica se mimetizou em suave
Concorde que apesar de só voar cinco anos depois, a carteirinha de habilitação
técnica dele, apareceu no meu bolso, e o francês passou a ser o meu idioma de
nascença.
MARTINE, esse era o nome da
francesinha de olhos verdes e olhar 24X48, charmosíssimo. Era como olhar um
Croque-monsieur apetitoso, sem saber o que fazer nas alturas e com o barulho
exterior, desaparecendo do meu interior. Conversamos muito... por mímica,
reconhecimento labial, libras e por aí afora, até que o avião pousou aqui no
Rio e a “enfant de la patrie“ desembarcou e... sumiu!!
Quando dei por mim já era
tarde e o horizonte perdido, pois esqueci "complètement" de pedir seu
telefone, e agora? Bom, só tinha duas chances e acertei na primeira.
Minha pax-deusa estava na fila
do táxi e consegui lhe passar meu telefone e o meu endereço, por via das
dúvidas.
Nessa época, morava com os
meus pais e minha irmã com 12 anos, que em 85, acabou entrando para o voo,
depois comissária Ana Paula.
Morávamos em Botafogo, na rua
Marquês de Olinda, e para minha surpresa, dois dias depois Martine apareceu com
presentes à minha família num gesto belíssimo de cortesia.
Ficamos juntos os três por quinze dias passeando pelo Rio, eu, e os dois franceses, a Martine e o Renault Gordini azul desbotado que havia comprado do Louback da escala, coleguinha light do Plínio heavy.
Foram quinze dias deliciosos
naquela época entre AVROS e amores, com a França toda me envolvendo com aquelas
duas máquinas, uma de fazer inveja a outra nem tanto, mas também sem fazer
vergonha.
No início de agosto, Martine
voltou à França via Caiena, falando Portucês, me deixando aqui largado à
própria sorte, tendo o Plínio como algoz e colado na minha cabeceira dentro do
meu telefone. E eu, com a firme intenção
de me reencontrar com a francesinha na cidade luz, o que ocorreu onze meses depois
de muita correspondência e muito folhear de dicionários.
O mês de julho de 1972 se
aproximava, materializando minhas férias, minha primeira viagem internacional,
enquanto o Plínio no máximo ia todos os dias para Marechal Hermes.
E então, finalmente chegou
aquela data tão esperada do início de julho de 1972, quando parti para a Europa
num brilhante B-707 e seu navegador com o sextante do Gago Coutinho, lá de
1922.
Minha viagem dos sonhos
começaria com a primeira escala de doze dias em Portugal, de onde tinha saído
dezoito anos antes e chegando ao Brasil na minha primeira de muitas travessias
futuras por trinta e dois anos, com apenas oito anos de idade.
Depois dessa primeira em 1954
o Atlântico se tornaria para mim uma via de dupla mão, sei lá, por talvez umas
presumíveis 1 700 travessias transatlânticas ida e volta tanto no sentido Leste
Europa, quanto no do Norte para a América e Sul para a África. Deve ter sido
algo assim, mas cálculo que esteja mais ou menos por aí, incluído as 25 mil
horas de voo, registro DAC.
O certo é que o meu sonho dourado, estava começando dentro daquele pássaro prateado, logo no início do mês de julho, ainda na primavera europeia, com pouco frio e nada de calor. Uma estação deliciosa na Europa!
Bem longe do Plínio, e cada
vez mais perto da Martine, minha nova Joana d'Arc.
A minha chegada a Portugal,
ainda se deu no período Salazarista e, portanto, quem controlava a imigração
ainda era a temível PIDE, e ao mostrar meu passaporte brasileiro com nascimento
na terrinha, senti olhares nada muito primaveris, mas já esperados.
E foi graças a esse
"salvo conduto" que talvez eu não esteja hoje embaixo de sete palmos
em terras angolanas!
Logo após a liberação na
imigração, estava pronto para a minha bela odisseia com a minha família me aguardando,
e a Europa sorrindo para mim.
Sou de uma família grande,
principalmente da parte do meu pai, e fui reencontrar muitos tios que me viram
pequenino embarcar ao Brasil e conhecer muitos primos que não conhecera nestes
dezoito anos de ausência. Não há palavras que traduzam meu sentimento naqueles
doze dias em Portugal, muitos passeios por lugares que não conhecia, muitos
jantares, muitos almoços, muita coisa para contar e ouvir. Como “turista"
pude ir quantas vezes quis, aos Cassinos do Estoril ou ao de Espinho, me
divertir a valer, coisa que jamais poderia fazer no Brasil.
Rever meus amiguinhos de
infância, as casas onde residi e o quartel dos bombeiros na frente de uma
delas, onde assisti chegar o primeiro Jeep Land Rover, que disparou minha
paixão por esses veículos pelos quais sou apaixonado até hoje.
E como não poderia deixar de o
fazer, fui acariciar com um beijo aquele meu sonho de criança matando todas
aquelas saudades reprimidas por longos anos.
Foi tudo surreal e muito,
muito além do esperado. Rejuvenescido 18 anos estava pronto para a próxima
aventura.
A segunda etapa, depois de
muitos telegramas a Paris, para confirmar a chegada, seria finalmente a cidade
luz, com a minha luz acesa de expectativa ao reencontro da francesinha
"merveilleusement belle"
Sim, essa era Martine, filha
de um gentleman légitime, ex-prefeito de uma cidade importante, ex-governador
de um departamento ultramarino e atual à época Directeur de la Protection
Civile Française, um cargo altíssimo na administração governamental.
Eu não sabia disso em nenhum
momento e só passei a conhecer esses fatos assim que cheguei a Paris, porque
eram pessoas super discretas, super educadas e por uma questão de respeito e
segurança, omito aqui seus sobrenomes.
A acolhida familiar foi muito gostosa
e mãe, a avó e ela já tinham reservado um pequeno hotel muito charmoso, “à
côté" do Bois de Boulogne, no 16ème arrondissement, muito perto de onde
residiam, onde me instalei muito confortavelmente. O único problema era o
banho, que a "concierge" não conseguia aceitar que um sul-americano
pudesse fazer isso todos os dias!
Mas, problema sanado, acabei
conseguindo realizar meus instintos sanitários a contento.
O roteiro da minha estadia não
podia ser mais perfeito. Na primeira semana, tendo Martine como uma perfeita
hostess, fui conhecendo vários museus e monumentos famosos em Paris.
Um deles, Les invalides onde
fica o túmulo de Napoleão, talvez tenha sido o que mais me impressionou, pois é
de arrepiar a suntuosidade daquela cripta onde repousa o Imperador herói
francês.
Saindo da cidade luz, andamos
por Versalhes, Deauvilhe, Trouvilhe, na Normandia, e fui levado a conhecer a
famosa catedral na cidade de Rouen, uma das mais lindas da Europa. O mais
interessante é que praticamente convidado por um alto funcionário do governo,
fiz todos esses passeios a bordo de uma viatura com chofer e bandeira francesa
no paralama. Nunca me senti tão importante na vida.
Sua avó gentilíssima, nos
emprestou seu Renault, e com ele fizemos vários roteiros gastronômicos pela
cité como Quartier Latin, Montmartre e muitos outros. Era como um sonho o que
estava vivenciando.
A terceira etapa, uma viagem rápida de dois dias a Londres para compras de presentes para meus pais, irmã e claro meus anfitriões. De volta a Paris, fui levado a conhecer os lindos castelos do vale de Loire, principalmente Chambord que fiquei maravilhado.
Conheci catedrais como
Chartres com os seus vitrais maravilhosos, a de Orleães, belíssima e o
santuário de Lisieux, também na Normandia, onde na Basílica se encontra o corpo
de Santa Terezinha.
Um fato interessante para não
esquecer, é que na Basílica de Santa Terezinha do menino Jesus de Lisieux, nas
laterais da nave estão as capelas dos países onde Santa Terezinha é venerada.
E lá, pude ver a pequena
capela do Brasil, algo que me deixou emocionado, pois não esperava.
Martine e sua família foram tremendamente
simpáticos comigo, me proporcionando dias magníficos e uma bagagem cultural
ímpar, além do idioma que por obrigação passei a usar com certa fluência. Tenho uma dívida eterna com essa família
fabulosa e até hoje eu e Martine somos muito amigos e nos comunicamos
frequentemente pelo WhatsApp.
Como tudo o que é bom acaba
rápido nos despedimos afetuosamente em Orly, pois meus amigos, o 707, o
navegador, o sextante me aguardavam na pista para me transportar de volta ao
Brasil, ao Rio, e ao... Plínio.
Título e Texto: José Manuel - Allons
enfants de la Varig, le jour de glorie
est arrivé! Outubro de 2021
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