sexta-feira, 5 de junho de 2020

A derrota dos prefeitos

Como a inépcia aumenta o custo da pandemia

J. R. Guzzo

O Brasil está tendo de encarar um plus a mais, em matéria de desgraça explícita, com a combinação desse vírus mortal que nos atormenta com a inépcia desvairada por parte dos “gestores” a quem, para infelicidade geral da nação, o destino entregou a tarefa de administrar a nossa vida durante estes tempos difíceis. A covid-19 já é um horror mais do que suficiente para qualquer um. Mas no caso do Brasil o preço a pagar está sendo o dobro (mais, talvez?) do que poderia ser, pois as “administrações regionais”, a quem o Supremo Tribunal Federal deu poderes de AI-5 para decidir tudo sobre a epidemia,  mostraram até agora uma inépcia sem limites para executar a tarefa que lhes foi entregue.


Nada fora do padrão, é claro: o Brasil sofre a doença crônica do “mau governo” desde o governador-geral Tomé de Souza. Em condições normais de temperatura e pressão, os brasileiros se acostumaram, bem ou mal, a conviver com a incompetência sem limites dos governantes; aguenta-se a roubalheira diária, a produção permanente de dificuldades para quem trabalha, os impostos pagos e jogados no lixo, a incapacidade de ter ideias decentes, a estupidez da burocracia e por aí afora. Mas quando chega um momento como o atual, em que dificuldades fora do comum exigiriam a presença nos governos de pessoas capazes de fazer alguma coisa mais inteligente do que se faz na média, o que se vê é a qualidade miserável, tanto do ponto de vista mental como do ponto de vista profissional, dos que são pagos para tomar decisões.

A observação mais simples dos fatos mostra que indivíduos que não conseguiriam cuidar direito nem de um aquário com dois peixes se veem, por força de um sistema político-eleitoral suicida, à frente de cidades com milhões de habitantes para administrar — e com os poderes de “tempos de guerra” que uma decisão aberrante do STF lhes concedeu. Como um negócio desses poderia dar certo? Não pode e não dá. Ninguém aqui é louco para dizer que o governo federal, no seu conjunto ou nos seus detalhes, seria melhor que os 27 governos estaduais e os 5.500 prefeitos para enfrentar uma calamidade com o calibre da covid-19. O Brasil é o Brasil, e o nível dos 12 milhões de funcionários que nos governam nos três níveis da administração é basicamente o mesmo; não há gênios federais e idiotas municipais. Mas isso não muda em nada o desastre que está sendo imposto ao país e à sua população pela inépcia dos que mandam em alguma coisa.

Não há cidadãos que estejam pagando mais caro pela crise do que paulistanos e cariocas

São Paulo e Rio de Janeiro, por serem as maiores e mais populosas cidades do país, são, inevitavelmente, as que pagam o maior preço pela baixa qualificação de seus prefeitos para enfrentar uma crise deste tamanho. Bruno Covas e Marcelo Crivella servem, levando-se em conta a competência média dos prefeitos brasileiros, para produzir o desastre controlado das gestões municipais em tempos sem cólera. Mas quando chega a cólera o resultado de sua presença no leme é isso aí que se está vendo há três meses. Haverá, com certeza, gente pior que eles. Mas não há outras duas cidades com 12 milhões e com 6 milhões de habitantes no Brasil; não há, em consequência, cidadãos que estejam pagando mais caro pela crise do que paulistanos e cariocas. Nenhum dos dois, para piorar, recebe a menor colaboração de seus governadores no sentido de fazer alguma coisa que preste, ou melhor do que estão fazendo.

Covas, por estar na prefeitura da maior cidade do Brasil, é também o que produz mais prejuízo — mas é óbvio que ele tem feito o possível para dar sua contribuição pessoal aos ferimentos que São Paulo vem sofrendo desde o começo da epidemia. Não poderia mesmo ser de outro jeito. Nos centros mais avançados da medicina e da pesquisa mundial, os cientistas, com todo o trabalho e os esforços que vêm fazendo, admitem que a ciência ainda não entende a covid-19. Eles não têm respostas, simplesmente, para questões fundamentais que todos nós colocamos. Como pode passar pela cabeça de alguém, então, que Bruno Covas saiba realmente alguma coisa sobre isso — e que tome decisões diárias a respeito? Mais: como achar que um secretário da prefeitura, médico ou não, está capacitado a baixar decretos sobre os deveres das pessoas em relação à epidemia? E um fiscal ou guarda de rua? Mas cada um deles, do prefeito ao guarda, se acha o máximo em matéria de coronavírus — tanto assim que não param de mexer nas coisas.

O prefeito já fez e desfez pelo menos três tipos de rodízio para o tráfego de veículos na cidade; é óbvio que não sabia o que estava fazendo em nenhuma das três vezes. Já bloqueou avenidas e mandou desbloquear. Para dificultar a movimentação das pessoas, em nome do “distanciamento social”, congestionou gravemente os ônibus e o metrô. Os números municipais sobre a doença não fazem nexo. Não combinam com os do Estado nem com os da própria prefeitura; já chegaram a informar que o número de recuperados é maior que o número de infectados. Covas já falou em abrir o comércio, no futuro, por “quatro horas” diárias; não disse quais. Das 6 às 10 da manhã? Das 4 da tarde às 8 da noite? Raro é o dia em que não faz alguma ameaça nova para uma população que ele não considera à altura, realmente, de suas expectativas de conduta.

Por que não havia hospitais e leitos de UTI antes da doença?

São Paulo vive há três meses num mundo imaginário, controlado pelo prefeito, seus analistas de marketing, bajuladores profissionais, “comunicadores” e médicos que querem estar de bem com quem manda e com os hospitais da elite. Trabalho, para essa gente, só existe na forma de “teletrabalho” e de “home office”. Comer é por “delivery”, no “aplicativo”. Compra-se “on-line”. Atividade física? É só acompanhar aulas de ginástica e de ioga na televisão — ou pegar sua bike e pedalar pelas ciclovias da prefeitura com seu capacete último tipo importado a mil e tantos reais. A única ideia que ocorre nessa bolha é: “Fique em casa”. Qual é o problema que alguns veem em atender a uma instrução tão óbvia? Basta seguir o roteiro de vida exposto acima. Não ocorre ao prefeito que haja entre os 12 milhões de moradores de São Paulo seres humanos diferentes dele e das pessoas que o cercam — gente que, imaginem só, não é funcionário público nem vive de renda e precisa trabalhar todos os dias para ganhar a vida.

Também não passa pela cabeça de ninguém, nessas esferas, internar-se num hospital público em caso de doença. É por isso, exatamente, que essa mesma prefeitura de São Paulo, tão fascinada hoje com a “saúde pública” e a missão de “salvar vidas”, jamais construiu uma rede municipal de hospitais com o nível de qualidade necessário para enfrentar uma doença que chama a atenção da mídia. Para doença que só mata pobre, é claro, o interesse da imprensa e das autoridades locais sempre oscilou entre zero e menos um; só agora, com a covid chegando perto, descobriram que o sistema público de saúde pode “entrar em colapso”. Daí os gestores fazem “hospitais de campanha” que rendem foto na primeira página do jornal e vídeo no “horário nobre” da televisão — e pagam dezenas de milhões de reais (sem licitação) para que esses hospitais sejam operados por organizações privadas. Por que não havia hospitais e leitos de UTI antes da doença? A população já pagou os impostos para a sua construção e operação. Mas isso tudo, no mundo das autoridades, é detalhe cansativo — e, além do mais, conversa de “direita”.

O Brasil é hoje o terceiro país com maior número de mortos pela covid-19 — mais de 30.000, segundo os “números oficiais” que são divulgados pelas diversas autoridades da área de saúde. Só as “autoridades regionais”, e ninguém mais, foram autorizadas a cuidar da epidemia no Brasil. De quem é, então, a responsabilidade direta por essa derrota? Não espere uma resposta honesta de seu prefeito ou de seu governador. A certeza é uma só: ninguém que ocupe qualquer cargo de responsabilidade em qualquer governo “local” pode dizer que alguma coisa deu certo.
Título e Texto: J. R. Guzzo, revista Oeste, 5-6-2020, 11h02

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