sábado, 13 de março de 2021

A farsa do “estado de direito”

O ministro Fachin, muito simplesmente, agiu como um militante político empenhado em servir a Lula e ao PT

J. R. Guzzo

Brasil vive, cada vez mais, uma farsa tamanho gigante. Finge que tem “instituições”, que precisam sempre ser preservadas como a coisa mais preciosa que existe no sistema solar. Finge que tem um “Estado de direito”, que é uma “democracia” e que há leis, a começar pela Constituição Cidadã, que são respeitadas e valem por igual para todos. Finge, mais do que tudo, que essas coisas existem porque aqui funciona um Supremo Tribunal Federal, como acontece em países bem-sucedidos — com juízes imparciais, focados unicamente no cumprimento do que está escrito na Constituição e incapazes de decidir alguma coisa em benefício das próprias ideias, interesses, amigos ou amigos dos amigos.

Nada disso tem realmente alguma coisa a ver com a realidade. Nestes dias, mais do que em qualquer outra ocasião recente, o Estado de direito no Brasil assumiu tudo o que precisa para tornar-se uma ficção absoluta. O ministro Edson Fachin, numa sentença inédita na história do STF, decidiu que todos os processos que envolvem o ex-presidente Lula por corrupção e lavagem de dinheiro, incluindo aquele em que ele já foi condenado em terceira e última instância, não valem mais nada.

No dia seguinte, o ministro Gilmar Mendes, num voto formal, disse que a Operação Lava Jato — o único momento, desde o ano 1500, em que a população brasileira acreditou na existência de Justiça em seu país — é “o maior escândalo judicial da nossa História”.

A decisão de Fachin é positivamente inexplicável, assim como a declaração de Gilmar, mas nem um nem o outro estão interessados em explicar nada, e nunca estiveram. A última de suas preocupações é fazer nexo, ou dar aos cidadãos algum tipo de satisfação sobre a lógica das decisões que tomam — ou respeitar os fatos e a ideia, comum para a quase totalidade das pessoas, de que a Justiça existe para separar o certo do errado. A noção fundamental do que é “Direito”, para ambos, se concentra numa só palavra: “garantismo”. Justificam tudo o que fazem dizendo que o seu objetivo é garantir que a lei seja cumprida em todos os seus detalhes. Na prática, o que fazem é garantir o atendimento dos próprios desejos. Isso, para não perder tempo com conversa complicada, é garantir a desordem. Como pode haver ordem desse jeito?

O ministro Fachin, no extraordinário decreto em que anulou de uma só vez quatro ações penais diferentes, não diz uma palavra sobre a culpa de Lula — provada em três instâncias, perante nove juízes diferentes, no caso da primeira condenação, numa bateria de processos em que há réus confessos, delações premiadas e devolução de dinheiro roubado. Diz apenas que Lula não deveria ter sido processado em Curitiba, e sim em Brasília. E daí? Que diferença faz se alguém é julgado em Curitiba, Brasília ou São Domingos do Cariri? É incompreensível para o cidadão pagador de impostos, ou para qualquer ser racional, que um juiz de direito, em vez de estabelecer se o réu cometeu ou não os crimes de que é acusado, fique fixado em discutir em qual vara penal deve correr o seu processo — mas não tente entender, porque para o ministro Fachin isso é uma questão de vida ou morte, e quem resolve é ele.

Na verdade, essa história de ficar regulando onde o sujeito deve ser julgado é um dos truques processuais mais ordinários que há no livro de regras; qualquer advogado de porta de cadeia, quando não tem mais que dizer em favor do réu, pode alegar que ele não está sendo julgado no “foro” certo. Tudo bem: que seja. Mas, no caso de Fachin e de Lula, que raio de grande assunto constitucional é esse, para ser decidido no Supremo? Como assim, num processo que simplesmente não tinha mais para onde ir, após seu julgamento em todas as instâncias possíveis — e no qual, ainda por cima, o ministro que julga o caso joga no lixo cinco anos de decisões da Justiça? Nenhum dos oito magistrados que julgaram a correção da primeira sentença achou nada de estranho com ela, ao longo destes anos todos. Não se achou nada porque nunca houve nada de errado com as condenações de Lula — nem quanto à sua culpa nem quanto a qualquer outra questão.

O que a decisão do ministro Fachin tem a ver com qualquer dos 250 artigos da Constituição Federal do Brasil? Os advogados de Lula alegaram que seu cliente estava sendo prejudicado em seus direitos constitucionais. Mas, nesse caso, os 200 milhões de cidadãos brasileiros podem ir até o Supremo, por qualquer coisa que lhes dê na telha, se acharem que seus direitos não estão sendo respeitados; por essa maneira de ver a Justiça, até uma ação de despejo pode acabar no STF. O fato, quando o palavrório fica de lado, é que não existe nesse caso questão constitucional nenhuma; só existiu a vontade de dizer que Lula não fez nada de mais, que recupera os seus direitos políticos e que merece um pedido público de desculpas. Na vida real, e pelo que fica comprovado na experiência do dia a dia, o STF não cumpre praticamente nunca, ou nunca quando realmente interessa, a sua única obrigação real — justamente, decidir se a Constituição brasileira está ou não está sendo cumprida. Os onze ministros fazem de tudo. Soltam corruptos e traficantes de droga; soltariam Al Capone se ele estivesse vivo. Proíbem a polícia de voar sobre as favelas do Rio de Janeiro. Prendem deputados e jornalistas por crime de opinião. Censuram a imprensa. Mandam o governo distribuir vacinas que estão na China e na Índia. O que não fazem é cuidar do respeito à Constituição — fazem tudo, menos isso. Ou, mais exatamente, fazem o contrário; são, hoje, os maiores agressores da lei que há no Brasil. Ninguém promove a insegurança jurídica tanto quanto eles.

Esqueçam a “exordial acusatória” e outras bobagens

A notícia foi recebida com festa na maioria da mídia, no submundo da política, em que pelo menos um terço dos congressistas responde a processo penal, e nos partidos de esquerda, que desde 2014 não ganham uma eleição — e que têm em Lula sua única e eterna esperança de salvação. Houve o esforço geral, francamente cômico, de debater motivos “técnicos” para a decisão de Fachin. Ele falou em “exordial acusatória”, e outros despropósitos incompreensíveis em português; é o suficiente, no Brasil, para acharem que o sujeito está sendo um jurista de grande profundidade. É a velha história: se ninguém entende nada do que o doutor está falando, então ele tem de ser mesmo um homem muito sério. Também circulou a misteriosa teoria de que Fachin, ao anular os processos de corrupção contra Lula, estava, na verdade, querendo combater a corrupção. Hein? Como assim? É que, agindo como agiu, o ministro quis ajudar a Lava Jato; de novo, o melhor é não perder o seu tempo tentando entender essa fábula. Nada disso, é claro, escondeu o que realmente houve: o que Fachin quis, e fez, foi riscar do cartório a ficha suja de Lula e dar a ele o direito de se candidatar nas eleições presidenciais de 2022.

Trata-se de uma dessas coisas que todos os interessados conhecem muito bem — mas de que nenhum deles fala, porque não lhes interessa falar. O ministro Fachin, muito simplesmente, agiu como um militante político empenhado em servir a Lula e ao PT, como se comprova por seus atos, suas palavras e sua conduta. Ele foi advogado do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, agrupamento ilegal e responsável, durante anos a fio, por centenas de crimes graves contra a pessoa e contra a propriedade. Em 2010, durante a campanha eleitoral, pediu publicamente votos para Dilma Rousseff — que depois, como presidente, lhe deu a sua cadeira no STF. Não foi, como quer a lenda oficial que ele faz circular até hoje, um ato impensado da juventude: Fachin tinha 52 anos de idade na época, e nunca deu motivos para achar que hoje, aos 63, se tornou um outro homem. Ao contrário: sete meses atrás, em agosto do ano passado, disse em entrevista que a candidatura de Lula na eleição presidencial de 2018, ocasião em que ele estava preso num xadrez da Polícia Federal em Curitiba, teria “feito bem à democracia”. Acrescentou que o Brasil de hoje vive em “recessão democrática”.

Se a candidatura de Lula teria sido uma coisa boa em 2018, não há razão para Fachin achar que seria uma coisa ruim em 2022. Seu voto para suprimir a ficha suja de Lula, além disso, foi precedido pela divulgação de uma “pesquisa de opinião”, feita por instituto de sondagens do qual ninguém tinha ouvido falar até hoje, dizendo que Lula tem “o maior potencial de votos” para 2022. Não se sabe o que poderia ser isso. O termo não existe nos métodos dos institutos mais conhecidos, como Ibope e Datafolha; mas dá para saber perfeitamente que é a favor de Lula. O ex-presidente, por sua vez, disse pouco antes que estava “à disposição” para a próxima eleição; até convidou Fernando Haddad, a quem dizia apoiar, para ser candidato a vice. Dirigentes petistas, enfim, festejaram em público a sua volta à política às vésperas da decisão de Fachin.

A verdade mais elementar é que não existia até agora nenhum candidato sério para disputar a eleição de 2022 com o presidente Jair Bolsonaro. As candidaturas inventadas até o momento, num arco que vai de governadores de Estado a apresentadores de programa de auditório, fracassaram miseravelmente. Foi sepultada junto com elas a miragem de que uma dessas criaturas do noticiário poderia obter a adesão de Lula e do PT, numa “frente democrática de centro-esquerda”, equilibrada, civilizada, limpinha, aprovada pelo ex-presidente Fernando Henrique e capaz de derrotar Bolsonaro. Acreditou-se mais uma vez — imaginem só se uma coisa dessas seria possível — que Lula e o PT iriam, patrioticamente, apoiar alguém que não seja eles mesmos. Nunca aconteceu. Não vai acontecer nunca.

O manifesto de Fachin resolve essa desgraça; onde não havia ninguém, não de verdade, agora passa a haver Lula, o único candidato de carne e osso com possibilidades efetivas, pelo menos na teoria, de evitar a reeleição de Bolsonaro nas próximas eleições. Esqueçam a “exordial acusatória” e outras bobagens. É isso, e apenas isso, que aconteceu — Lula, por sinal, já estava pedindo voto logo no dia seguinte à liquidação dos seus processos. Talvez não mude nada no mundo das realidades, é verdade, porque o problema essencial continua sendo a candidatura de Bolsonaro; é aí que está a complicação verdadeira, e ela permanece do mesmo tamanho. Mas o STF fez o que poderia fazer até o momento para derrotar o presidente em 2022, ou quando der — se for preciso fazer mais, é coisa para ver de novo mais adiante. Por enquanto é o que temos. É previsível, obviamente, que os ministros façam outra vez o que Fachin e Gilmar acabam de fazer: talvez venham com algum embargo agravante, ou agravo embargante, ou seja lá o que inventarem, proibindo Bolsonaro de se candidatar de novo, ou de continuar na Presidência, ou de governar o país. Sempre sobra, além e acima de tudo, a possibilidade de fraudar a apuração das eleições; é garantido, para tanto, que o Supremo vai aprovar tudo o que tiver de ser aprovado.

Esse jogo, na verdade, está sendo jogado desde que Dilma foi posta no olho da rua pelo Congresso Nacional, em maio de 2016 — com o “Fora, Temer”, a tramoia do procurador Janot junto a um megaempresário ladrão para derrubar o então presidente e as tentativas de conseguir o impeachment, primeiro do próprio Temer, e depois de Bolsonaro. Continua agora, com a anulação dos processos de Lula. Não há sinais de que possa parar enquanto a esquerda não voltar ao governo.

Título e Texto: J. R. Guzzo, revista Oeste, nº 51, 12-3-2021, 9h20

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