Augusto Nunes
Certamente não foi “mamãe” a
primeira palavra pronunciada por Luiz Edson Fachin quando, ainda usando
fraldas, estreou no mundo das vogais e consoantes em Rondinha, cidade gaúcha
onde nasceu em 1958. Deve ter sido “genitora” (ou “rainha do lar”) a senha que
reiterou a missão que lhe fora atribuída na passagem pela Terra: em vez de
falar língua de gente, sempre buscaria um sinônimo mais pedante, mais erudito,
menos familiar a ouvidos rústicos. Tal destino foi escancarado já na faculdade
de Direito: o jovem Fachin jamais concordava com algo; ele anuía. Nem
discordava de alguém; preferia discrepar. Não aconselhava ninguém; achava
melhor inculcar. Tampouco criticava; apenas acoimava de vez em quando algum dos
raros desafetos.
Com cada fio de cabelo
estacionado em seu lugar, óculos de primeiro da classe, um semblante severo de
quem faz questão de noivar antes do casamento, o advogado em começo de carreira
era o professor de Direito Civil em gestação. E desde a primeira aula o
catedrático pareceu estar ensaiando para fazer bonito no Supremo Tribunal
Federal. Em junho de 2015, enfim ganhou de Dilma Rousseff a vaga no Timão da
Toga aberta pela morte de Teori Zavascki. É provável que a escolha tenha sido
influenciada pelo vídeo, gravado durante a campanha eleitoral de 2010, em que
Fachin formalizou o apoio de um grupo de advogados do Paraná à candidata de
Lula. É também provável que o ministro e a ex-presidente tenham uma convivência
harmoniosa porque nenhum dos dois entende o que o outro está dizendo.
Dilma, cujo repertório vocabular não chega a 500 palavras, fala dilmês, um estranhíssimo subdialeto feito de frases que nunca têm começo, meio e fim. Fachin parece ter como livro de cabeceira um dicionário, que vive consultando para descobrir raridades semânticas que tornem ainda mais indecifrável o que diz ou escreve. A coisa piorou dramaticamente depois que o ministro fundiu num só atentado à linguística o português pernóstico e o juridiquês castiço. (Já faz tempo que não me sai da cabeça, aliás, a ideia de entrevistar alguém que tenha traduzido para a linguagem de Libras um falatório improvisado por Dilma Rousseff. Preciso saber como conseguiu entender o que disse uma mulher que não diz coisa com coisa. Quem traduz uma discurseira em dilmês merece uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Mas estou divagando. Voltemos a Fachin.)
Nem a maior das sumidades em
Libras saberia reproduzir com as mãos e o restante do corpo a obra-prima do
fachinês que assombrou o país no começo da semana: o relatório que devolveu o
ex-presidente Lula ao picadeiro eleitoral do Circo Brasil. É uma catarata de
tapeações, sofismas, gingas de chicaneiro, malabarismos bacharelescos,
interpretações vigaristas, latinórios pilantras e sopapos na lógica que, sem
inocentar explicitamente um pecador juramentado, livrou o ex-presidente e
ex-presidiário de condenações passadas, presentes e futuras. A forma é tão
detestável quanto o conteúdo, registra J. R. Guzzo no brilhante
artigo publicado nesta edição. Que mais se poderia esperar de alguém que
troca uma expressão singela como “denúncia inicial” pela espantosa “exordial
acusatória”? Exordial acusatória, isso mesmo. O estilo é o homem.
Uma missa negra celebrou a volta do chefe supremo à vida de candidato
profissional
“Principio destacando que o
recurso integrativo se volta contra despacho de afetação do julgamento do
presente writ ao Plenário do Supremo Tribunal Federal,
circunstância que impõe a deliberação unipessoal da insurgência”, capricha o
doutor em exibicionismo na abertura do trecho em que tenta esconder o que fará
num cipoal de palavras distantes muitos anos-luz do brasileiro comum. “Impende
à Justiça…”, segue em frente o gênio da raça, avisando que o raso “Cabe à
Justiça” é coisa para quem não sabe conjugar o solene “impender”. Atarantados
com o palavrório de hospício, especialistas em STF que abundam na imprensa
velha dedilharam a lira do delírio. Deduziram, por exemplo, que “Fachin fez
isso para impedir a anulação de todos os julgamentos conduzidos por Sergio Moro
e preservar as provas colhidas pela Lava Jato”. Com aliados assim, os
procuradores da Lava Jato, os magistrados que julgaram os quadrilheiros do Petrolão
e os policiais federais engajados na operação não precisam de inimigos.
No dia seguinte, enquanto
outra missa negra celebrava a volta do chefe supremo à vida de candidato
profissional, os devotos da seita acompanhavam com o olho rútilo e os lábios
trêmulos da imagem de Nelson Rodrigues o segundo ato da versão mais cafajeste da
ópera dos malandros. Apesar da anulação das condenações, a Segunda Turma do STF
decidiu manter o julgamento do juiz Sergio Moro, acusado por advogados de Lula
de ter agido com parcialidade nos processos que envolvem o chefão. Os ministros
Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski haviam garantido o empate em 2 a 2 quando o
caçula Nunes Marques interrompeu o espetáculo do cinismo com um pedido de
vista. Quer examinar melhor o assunto. Mesmo que um surto de lucidez o leve a
absolver o símbolo da Lava Jato, como fizeram Fachin e Cármen Lúcia em 2018,
Moro continuará em perigo. Em jantares com amigos, Gilmar Mendes vem se gabando
de ter atraído Cármen Lúcia para a tropa de choque que chefia, formada por
Lewandowski, Dias Toffoli e Alexandre de Moraes. A única mulher da Segunda
Turma avisou que vai rever seu voto. Se decidiu piorar a biografia, será
lembrada como coveira da maior operação anticorrupção ocorrida no mundo.
Fachin demorou cinco anos para
descobrir que os processos sobre o tríplex no Guarujá e o sítio em Atibaia
deveriam ter tramitado não na sede da Lava Jato em Curitiba, mas na sucursal de
Brasília. Em dezembro passado, num ofício remetido ao presidente do STF, o
relator Fachin garantiu a Luiz Fux que o trabalho da operação “é pautado pela
legalidade constitucional” e louvou os métodos aperfeiçoados pela Lava Jato. “É
possível, ao mesmo tempo, ser democrático e combater a corrupção pelo
aprimoramento do sistema judicial”, resumiu. O ministro também recomendou
que o Supremo contemplasse com especial atenção “a seletividade do sistema
penal, injusto e desigual para a parcela menos abastada da população e leniente
com os poderosos às voltas com práticas criminosas”. Passados apenas
três meses, aliou-se aos poderosos e escureceu o desfecho do mais audacioso
faroeste à brasileira. Até agora, os vilões se contentavam com passar o filme
inteiro perseguindo os homens da lei. Agora a bandidagem quer também prender o
juiz.
Título e Texto: Augusto
Nunes, revista
Oeste, 12-3-2021, 9h20
Relacionados:
A farsa do “estado de direito”
Embate no STF: Marco Aurélio chama Luiz Fux de ‘autoritário’ (Será que ele, Marco, também será preso?)
‘Equilíbrio de Poderes na nossa democracia está rompido’, diz Mourão
Editorial: Justiça às cegas
Augusto Nunes: Supremo pode acabar eternizando o clima de insegurança jurídica
Laurentino Gomes e o cancelamento do Brasil
O meteoro Bolsonaro
Bia Kicis é eleita presidente da Comissão de Constituição e Justiça
Compensa, ou não compensa?
Fachin anula condenações de Lula na Lava Jato (Se dúvidas houvera quanto ao STF…)
A ameaça autoritária vem dos tucanos, não de Bolsonaro
Quem precisa de AI-5?
Ações contra Lula podem prescrever, alerta Dallagnol
Dez anos depois de pedir votos para Dilma Rousseff, Fachin torna Lula elegível
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-