Almir Pazzianotto Pinto
Divulgado o cronograma de
julgamento da Ação Penal 12-MG, ajuizada pelo procurador-geral da República
contra 40 réus, no processo mundialmente conhecido como "mensalão",
resta a nós, cidadãos despidos de privilégios, aguardar pelos resultados, na
expectativa de sentença a ser conhecida no final de agosto.
Antes, porém, creio ser
recomendável lembrar que a causa tramita em foro privilegiado e entender o que
isso significa.
A regra democrática de
igualdade de todos perante a lei (cláusula da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, firmada em 1948) está incorporada às nossas Constituições republicanas
desde a primeira delas, de 1891. Não poderia contê-la a Carta Imperial de 1824,
pois ali era permitida a exploração de trabalho escravo. A existência de foro
privilegiado não deixa, portanto, de caracterizar transgressão ao conceito
republicano de paridade. Privilégio, segundo os dicionários, deriva do latim
privilegium, ou privus + lex, lei colocada a favor de alguém onde seria justo
haver tratamento isonômico.
Já na Constituição de 1891,
competia ao Supremo Tribunal Federal (STF) processar e julgar, originária e
privativamente, o presidente da República e ministros de Estado, nos crimes
comuns; e ministros diplomáticos, nos comuns e de responsabilidade (Artigo 59).
Preliminarmente, entretanto, se submeteriam a veredicto político do Senado, que
poderia puni-los com a perda do cargo e incapacitá-los para o exercício de
outro, "sem prejuízo da ação da justiça ordinária, contra o
condenado" (Artigo 53).
Guardadas as diferenças,
continua a ser assim. Aumentou, todavia, o número dos beneficiados por foro
especial. No rol do Artigo 102 da Constituição de 1988, estão relacionados,
para infrações penais comuns, além do presidente e dos ministros, o
vice-presidente, membros do Congresso Nacional, os próprios integrantes do
Supremo e o procurador-geral da República; e em casos considerados infrações
penais comuns e crimes de responsabilidade, ministros de Estado, comandantes do
Exército, da Marinha e da Aeronáutica, membros dos tribunais superiores e do
Tribunal de Contas da União e chefes de missões diplomáticas de caráter
permanente. No processo crime do "mensalão", além de medalhões
políticos já cassados, temos a presença de banqueiros, bancários, empresários,
publicitários, militantes partidários e cabos eleitorais.
O julgamento em foro
privilegiado oferece duas faces: uma, positiva, pois o Supremo é integrado por
ministros que, segundo reconhecimento do Senado, têm notável saber jurídico,
reputação ilibada, além de plena independência, eis que atingiram o topo da
carreira, e nada mais têm a aspirar além de posição destacada na História.
O juiz de primeira instância é
alguém aprovado em concurso público, mas isso não lhe basta para conferir os
atributos dos grandes magistrados. Tem longo caminho a percorrer na acidentada
carreira e um processo como o do "mensalão" pode - embora não deva -
lhe trazer algum constrangimento. De toda forma, no caso de sentença
equivocada, haverá instância superior destinada a corrigi-la.
Ao lado positivo do foro
especial se oferece um lado negativo: decisão do Supremo Tribunal Federal não
comporta recurso. É via estreita e de mão única. Por mais que se lhe critiquem,
nasce com o atributo de caso julgado. Se houver condenação, será irrecorrível,
e o mesmo ocorrerá na hipótese de injusta absolvição.
Para quem julga, contudo,
inexiste o lado bom. No foro privilegiado, o ministro não tem o direito de
errar, embora, por vezes, cometa pecados irreparáveis. Está presente, na
memória das pessoas de bem, o ocorrido no caso Cesare Battisti. Condenado pela
Justiça da Itália à prisão perpétua por assaltos a mão armada, triplo
assassinato e por tornar inválido o filho de uma das vítimas, foi absolvido por
via oblíqua, e atualmente goza a vida flanando em companhia daqueles que o
admiram.
As dificuldades dos ministros
tornam-se maiores, pois decidem, em geral por maioria, após se envolver na
defesa de argumentos conflitantes. Além do relator e do revisor, nove outros
ministros têm o direito de concordar, ou de divergir, no todo ou em parte.
Sabendo que a ação criminal do "mensalão" envolve 40 denunciados, com
seus respectivos advogados, é fácil avaliar os obstáculos a ser transpostos
para que haja sentença na data prevista. Bastará um dos ministros pedir vista.
A morosidade que entorpece o
caso do "mensalão" tem, como um dos vetores, a prolixidade da
Constituição, responsável pela ampliação das competências do Supremo,
sobrecarregando-o com processos que deveriam ter findado nos Tribunais de
Justiça dos Estados ou em tribunais superiores.
Lembremo-nos de que, com o
propósito de quebrar a espinha dorsal do Supremo, o regime militar, mediante
Ato Institucional, ampliou o número de ministros de 11 para 16. A experiência
durou pouco, pois trouxe maus resultados, e levou o governo a retroceder. A
solução consiste, obviamente, na redução da carga de trabalho, conforme já
propunha Carlos Maximiliano no livro Comentários à Constituição Brasileira,
editado em 1918. Assinalou o jurista: "À semelhança do que sucedeu com os
Estados Unidos e a Argentina, acha-se o Brasil em face de um problema cuja
solução se impõe - aliviar a Corte do excesso de trabalho, do qual não dá
conta".
O "mensalão" deve
ser olhado como um divisor de águas. Do resultado que a Ação Criminal vier a
colher, mediante votação unânime ou por maioria, a Nação poderá vislumbrar o
futuro. Saberá se prevalecerão os valores advindos do trabalho e da honestidade
ou se os louros da vitória pertencerão a picaretas, aventureiros e arrivistas.
A quem se encontra na
planície, nada resta a fazer, senão acreditar na isenção do Supremo e aguardar
a condenação dos culpados.
Título e Texto: Almir
Pazzianotto Pinto, advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior
do Trabalho, Estado de S. Paulo, 03-07-2012
Edição: JP
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