Hoje, nem Bolsonaro, nem os militares demitidos, nem os que foram para o lugar deles podem dar golpe nenhum — não no mundo das realidades
J. R. Guzzo
Houve um tempo, já faz muito
tempo, em que muito jornalista da área política neste país dava a si próprio a
obrigação de ler, reler e entender o Almanaque do Exército. Era importante;
quem tinha a capacidade de decifrar aquela maçaroca toda de nomes, datas,
estrelas, patentes, medalhas e sabe lá Deus o que mais — uma coisa árida,
misteriosa e pouco amigável — recebia a qualificação de “bem-informado” e,
portanto, capaz de compreender o que estava acontecendo no governo e no Brasil.
Nunca ficou claro, no fim das contas, para que essas informações realmente
serviam, mas o especialista em “almanaque” era um sujeito levado altamente a
sério. “Fulano sabe tudo do Almanaque”, dizia-se, com respeito e reverência,
nas redações.
Hoje a maioria dos jornalistas
nem sabe que existe um Almanaque do Exército e, se por acaso sabe, não acha
vantagem nenhuma — porque, muito simplesmente, o Almanaque não serve para mais nada.
É consultado, sob a apresentação de senha, por oficiais, cabos e taifeiros,
mas, fora isso, não interessa praticamente a mais ninguém. Muito natural: o que
adianta, para qualquer efeito prático, saber quem pode ser promovido no
Exército, quando e por quê? Ou na Aeronáutica e na Marinha? Não há como ficar bem-informado
sabendo nada disso. Já foi importante — hoje não é. Não é porque as Forças
Armadas e seus oficiais deixaram de ser o que eram. São outra coisa, num outro
país e num outo tempo.
A demissão dos três
comandantes militares, todos de uma vez só, e nas vésperas do dia 31 de março,
poria a terra em transe, no Brasil daqueles tempos. Acaba de acontecer, em
sequência à demissão do chefe nominal dos três, o ministro da Defesa, e a vida
continua exatamente como era. Não é bom: o país no dia seguinte à demissão
coletiva permanecia entregue à pior crise de saúde de toda a sua história, com
as “autoridades locais” gerindo uma epidemia que já causou 320.000 mortes, a
economia em vias de colapso e milhões de vidas arruinadas pela perda do
trabalho. Mas seria pior se, em cima de tudo isso, ainda houvesse uma “crise
militar”. Não há.
O presidente Jair Bolsonaro, obviamente, não quis mais saber do seu ministro da Defesa e dos chefes das três Forças — cansou de olhar para o lado deles, buscando apoio contra os inimigos do seu governo, e ver que não havia ninguém em casa. Os comandantes, por sua vez, deixaram mais do que claro que não querem dar nem sequer uma volta no quarteirão para ajudar o presidente a reforçar a sua autoridade. A tese preferida na oposição, junto aos professores de ciência política e entre os economistas de centro-esquerda, é que Bolsonaro queria dar algum tipo de “autogolpe” e que os “militares” se recusaram a participar, em obediência às suas convicções democráticas. Disso estaria resultando uma crise política descomunal — e essa crise, além do mais, poderia dar ruim para o presidente, pois a “tropa”, indignada com as ameaças à democracia por parte do governo, iria tomar alguma providência.
O problema dessas histórias,
contadas pelos peritos que a mídia vai buscar nas universidades para dar
entrevistas e participar de mesas-redondas, é que nem Bolsonaro, nem os
militares demitidos, nem os que foram para o lugar deles podem dar golpe nenhum
— não no mundo das realidades. O presidente pode se livrar, como se livrou, de
todos os generais, almirantes e brigadeiros que lhe faziam cara feia. Mas golpe
militar, em nosso século 21, tornou-se uma dessas coisas que não se fazem mais.
Nem é uma questão de ser a favor ou contra, de acreditar ou não no estado de
direito, na Constituição e nas “instituições” – é que, na prática, não dá para
fazer. “Botar a tropa na rua”, fechar o Congresso e tomar a torre de
transmissão da Globo depende de várias coisas: nenhuma delas está disponível no
momento. Golpe, venha de onde vier, precisa de liderança clara nos quartéis.
Precisa de uma lista muito exata das coisas que serão feitas na vida real,
imediatamente depois do golpe. Precisa de um programa de governo. Precisa de
apoio, ou da indiferença, internacional. Precisa de ideias. Nada disso existe.
Militar transformou-se em profissional
Não é que haja alguém disposto
a mexer uma palha em defesa do Supremo ou do Congresso. Não há ninguém, fora
das classes intelectuais e das suas adjacências, ligando a mínima para nenhum
dos dois; provavelmente haveria uma salva de palmas e festa nas ruas se fossem
fechados sem data para abrir de novo. Mas também não há ninguém capaz de juntar
o Exército, a maioria da opinião pública e as principais forças da sociedade
para dar um golpe. A última vez que isso aconteceu foi há quase 60 anos, em
1964. E foi justamente o regime que se criou na ocasião, por mais que isso
desagrade aos analistas políticos, que acabou de vez com a agitação militar que
sempre envenenou a vida política do Brasil. A partir de 1964, todo e qualquer
general, depois de dez anos no posto, vai para casa — não há exceções, e com
isso acabou a possibilidade de os oficiais superiores criarem partidos próprios
em seu benefício dentro do Exército, da Marinha ou da Aeronáutica. Sumiu a
figura do “general forte”, ou do “brigadeiro influente”. Militar, de lá para
cá, transformou-se em profissional; um oficial só é promovido por mérito e
outros critérios objetivos, e a disciplina é o valor número 1.
Os militares brasileiros de
hoje, na verdade, são funcionários públicos basicamente iguais a todos os
outros. Têm preocupações específicas com o desenvolvimento do submarino nuclear
e do caça supersônico, com a defesa da Amazônia e com o suporte a uma série de
ações civis, mas é isso. Não pensam em fazer política ou “influir” na vida do
Brasil; cumprem as tarefas que recebem dos superiores, mais ou menos como a
Receita Federal recolhe impostos e o Correio distribui cartas. Estão prestando
atenção no soldo, na aposentadoria e na licença-prêmio convertida em “pecúnia”.
No caso da demissão dos três comandantes ao mesmo tempo está se tentando, desde
o primeiro dia, achar uma crise — seja porque os chefes cumprimentaram o
presidente com o cotovelo, seja porque o novo ministro da Defesa não é o mais
“antigo”, seja porque o general Mourão estaria inquieto, seja por outra razão
qualquer. Tudo serve. Mas crise mesmo não há — fora da imprensa, do mundo
político e dos especialistas. Os militares gostaram? Não gostaram? Tanto faz.
Hoje em dia ninguém mais tem medo de militar nenhum, nem do que eles possam
fazer.
Bolsonaro não pode mandar um
cabo e um praça fecharem o STF, como 99% — vá lá, 95% — dos seus admiradores
gostariam muito que ele fizesse. Os “militares”, por sua vez, não podem
derrubar o presidente — ele só sai de lá com eleição. Em matéria de crise,
chega a que já está aí todos os dias.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista Oeste, nº 54, 2-4-2021
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