No complexo jogo geopolítico, Biden expõe uma fragilidade constrangedora diante da China e da Rússia
Ana Paula Henkel
Não é mais nenhum mistério,
tampouco especulação, que a China investe voraz e globalmente na estratégia de se
tornar o país mais influente do planeta. E, para isso, é preciso tirar o Tio
Sam da sala. É tradição na história norte-americana que os presidentes
desenvolvam suas “doutrinas” de política externa, projetadas para refletir os
desafios enfrentados pelas relações internacionais e para propor soluções no
campo geopolítico. A prática começou com a Doutrina Monroe, em 1823, e
continuou com o corolário Roosevelt, introduzido por Theodore Roosevelt em
1904.
A tradição no período
pós-Segunda Guerra Mundial seguiu com a Doutrina Truman, em 1947, sob a qual os
EUA forneceram apoio aos governos da Grécia e da Turquia como parte de uma
estratégia da Guerra Fria para manter ambas as nações fora da esfera de
influência soviética. Logo depois, a história foi marcada pelas doutrinas
Eisenhower, Kennedy, Johnson, Nixon e Carter. Todas definiram as abordagens de
política externa desses presidentes em momentos desafiadores da História.
Nos anos 1980, a Doutrina
Reagan foi uma estratégia implementada pela administração do 40º presidente
para reduzir a influência global da União Soviética no final da Guerra Fria.
Sob a Doutrina Reagan, os Estados Unidos ajudaram explícita ou
extraoficialmente guerrilhas anticomunistas e movimentos de resistência contra
governos marxistas na África, na Ásia e na América Latina. Um dos objetivos era
sinalizar que qualquer inimigo da América e do Ocidente estaria correndo
riscos.
Até presidentes considerados fracos no campo da política externa tiveram seus dias de um Tio Sam firme, que impunha respeito. Mesmo com a catastrófica condução no caso dos reféns na embaixada de Teerã, evento que se arrastou por mais de quatrocentos dias (não deixe de assistir ao filme Argo, de 2012), a administração de Jimmy Carter chegou a prover assistência militar secreta aos mujahidins do Afeganistão. Foi um esforço para expulsar os soviéticos do país, ou pelo menos aumentar o custo militar e político da ocupação da URSS na região.
E foi em 2008 que a nação que
muitos consideram racista — são apenas 13% de negros numa população de 330
milhões de habitantes — elegeu um presidente negro. E depois o reelegeu. Com
dois mandatos na Casa Branca, Barack Obama tinha tudo para deixar um legado de
sucesso. Carismático, com excelente oratória, imagem e discursos fortes, tinha
aquele ar presidenciável. O que poderia dar errado? Tudo. Eu poderia usar de
certa diplomacia para descrever quem foi Barack Obama para os EUA e o Ocidente,
mas terei de ser direta. Barack foi uma enganação.
Como um dos presidentes mais
inclinados para a esquerda no espectro político-ideológico da História dos
Estados Unidos, Barack Obama, com suas políticas, deixaria exultante o mais
ferrenho eleitor do Psol. Foram políticas embaladas em retóricas fofas que
ajudaram a enterrar o antigo Partido Democrata de John F. Kennedy — medidas que
trouxeram à luz do dia o cataclismo da facção de Alexandria Ocasio-Cortez e sua
turma louca da extrema-esquerda.
Barack, o sonho de consumo de
todo liberal falsificado no Brasil, não passa de um engodo mundial. Como tal,
seu legado foi a passagem do bastão das políticas vazias e fracas para o seu
vice, que agora é o homem mais poderoso do mundo. Do alto da incômoda e bizarra
fragilidade e incompetência, Joe Biden segue firme na perigosa mensagem de
fraqueza perante players geopolíticos importantes e perigosos
como Irã, China, e mesmo uma enfraquecida Rússia.
Durante a campanha
presidencial do ano passado, foi comovente o esforço conjunto das big
techs e de veículos da velha imprensa para esconder os escândalos que
envolvem Hunter Biden, filho do então candidato — dossiês com provas
consistentes indicaram relações nada republicanas entre Hunter e autoridades da
Ucrânia e da China. Já não é mais nenhum mistério que a família Biden possui
laços com empresas chinesas — leia-se ditadura chinesa — que vão bem além do
que os norte-americanos gostariam. Mas o problema não para por aí. Esses laços
amarrando as mãos do Tio Sam?
A China está envolvida até o
pescoço com sistemáticos roubos de patentes e direitos autorais dos EUA, viola
descaradamente acordos comerciais, manipula sua moeda, despeja produtos abaixo
do custo nos mercados mundiais. Mais: investe na guerra cibernética, expropria
a tecnologia ocidental e bloqueia informações precisas sobre as origens da
covid-19. Depois que o malcriado do Twitter se mudou da Casa Branca, nada,
absolutamente nenhum desses pontos, cruciais na atual Guerra Fria, foi
mencionado por autoridades do governo em reuniões ou coletivas de imprensa.
A
Doutrina Biden coloca sangue na água. E os tubarões já perceberam isso
A conta para os chineses é
simples: se a China distribui dinheiro, ela acredita que é dona do
destinatário. E não estamos falando apenas da família Biden. Nos últimos cinco
anos, a Universidade de Nova Iorque recebeu cerca de US$ 47 milhões em doações da
China. O Departamento de Educação dos Estados Unidos advertiu recentemente a
Universidade de Stanford por não ter declarado mais de US$ 64 milhões em
doações de fontes chinesas desde 2010. Não é surpresa que a China tenha enviado
recentemente um pesquisador visitante a Stanford, que acabou identificado como
agente dos militares chineses e preso pelas autoridades federais por ter
mentido em seu processo de visto e entrada nos EUA.
A China anda a passos largos
para destruir de vez qualquer resquício de democracia em Hong Kong, pode ter
destruído a cultura do Tibete, e comete atrocidades como colocar minorias
muçulmanas em “campos de reeducação” — na verdade, campos de concentração. Além
disso, o país discrimina sistematicamente os visitantes africanos. Cada vez que
norte-americanos preeminentes, como atletas, celebridades e atores desmiolados,
condenam os Estados Unidos por um suposto racismo, os chineses racistas e
genocidas apenas aplaudem. A China está em uma corrida para alcançar a
hegemonia global e precisa buscar uma opinião mundial favorável até alcançar
poder militar e econômico superior.
Há duas semanas, em Anchorage,
no Alasca, diplomatas chineses demoliram o secretário de Estado, Antony
Blinken, e o conselheiro de Segurança Nacional Jake Sullivan numa reunião
transmitida para todo o mundo. A mídia fez o possível para minimizar a situação
constrangedora, mas era impossível ignorar o desrespeito demonstrado aos EUA.
Desde que o recém-eleito presidente John Kennedy foi humilhado, em 1961, na
cúpula de Viena pelo homem forte da União Soviética, Nikita Khrushchev, os
diplomatas norte-americanos não haviam sido maltratados por um governo
comunista.
Os diplomatas chineses usaram
as próprias declarações do Partido Democrata sobre quão corrupto, racista
e irremediavelmente perverso são os Estados Unidos. A mensagem, incansavelmente
repetida pela esquerda em 2020, de que os negros são rotineiramente caçados nas
ruas, regularmente mortos pelas forças policiais e que não têm direitos foi a
deixa para a bofetada chinesa.
A pá de cal diplomática
aconteceu depois que os norte-americanos tentaram condenar a China por suas
políticas econômicas e abusos contra os direitos humanos, inclusive contra o
grupo étnico uigur. A China, com a calma de quem sabe quem está dando as cartas
na mesa, disse que os Estados Unidos não estão em posição de proferir
sermões. Ouch.
E, como humilhação pouca é
bobagem, numa recente entrevista ensaiada para o canal de tevê norte-americano
ABC, Joe Biden, demonstrando perturbadora falta de conexão com o assunto em
pauta, chamou o presidente russo Vladimir Putin de “assassino” e “sem alma”.
Uma coisa seria se houvesse algum propósito por trás da declaração hostil de
Biden, mas suas palavras, ditas quase gaguejando, não pareciam vinculadas a
nenhum objetivo estratégico de política externa.
Putin aproveitou ao máximo a
asneira dita pelo “para sempre vice de Obama”. Depois de algumas reflexões
filosóficas e sarcásticas sobre como Biden pode estar projetando suas próprias
incoerências no cargo, o russo disparou que os Estados Unidos têm uma história
sombria e, rapidamente, desafiou Biden para um debate público ao vivo
pela internet, completando: “E quanto mais cedo for feito, melhor,
mesmo que Biden precise de um pouco de descanso e tempo para se preparar”.
Biden até hoje, depois de três
meses na Casa Branca, não encarou uma coletiva de imprensa sem jornalistas
previamente escolhidos com perguntadas checadas. A eterna sombra de Obama não
vai poder evitar a imprensa para sempre. Em breve, ele terá de enfrentar
reuniões improvisadas com líderes estrangeiros. Estará preparado para a
principal arena global depois de um ano de bajulação da mídia?
A Doutrina Biden coloca sangue
na água. E os tubarões já perceberam isso. Os norte-americanos e o mundo ainda
sentirão falta do agente laranja na Casa Branca e sua doutrina malcriada de
impor respeito e paz por meio da força.
Título e Texto: Ana Paula
Henkel, revista Oeste, nº 55. 9-4-2021
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