sábado, 12 de junho de 2021

Retrato de um Brasil que não existe

A revista inglesa The Economist colocou na capa sua denúncia sobre um país mórbido, amaldiçoado e respirando por aparelhos, justo no momento em que surgem as suas melhores notícias há pelo menos cinco anos

Reprodução de capas que a revista inglesa The Economist publicou sobre o Brasil
J. R. Guzzo

O Brasil realmente não dá sorte com a imprensa internacional. O mundo gira, o tempo passa e nada de melhorar a ideia que os jornalistas de outros países fazem da nossa terra, nossas coisas e nossa gente; dos nossos governos, então, é melhor nem falar nada. Antigamente diziam que o sujeito podia ser morto à flecha ou comido por uma onça em plena Avenida Copacabana. Hoje dizem que o Brasil está praticamente morto, destruído pelas dez pragas do faraó e, para complicar, é governado por uma espécie de sub-Calígula tropical de direita que com certeza vai arruinar a humanidade se não for detido já, neste instante.

Talvez fosse melhor, pensando bem, ficar com a imagem externa que o Brasil tinha no tempo da onça em Copacabana. Pelo menos, naquela época, o que se dizia era a bobagem fundamental — ou seja, o despropósito em estado puro e simples, sem compromisso nenhum com qualquer fato, que podia incomodar os indignados de sempre e ferir o orgulho de um país caipira e inclinado a julgar-se mais europeu do que era, mas não passava muito disso. Hoje, além da coleção de disparates de ontem, é preciso ouvir prodigiosas lições de moral, discursos de correção política e teorias cansativas sobre administração pública. Ou seja: estão escrevendo que tem onça, querem explicar por que tem, e ensinam o que nós todos temos de fazer para sair dessa vida. Pior: a elite nativa acredita em tudo, fica agitadíssima e diz a si própria que desta vez, positivamente, está tudo acabado para o Brasil.

A tragédia do momento é um artigo da revista inglesa The Economist, que, como o New York Times e mais uma ou outra publicação norte-americana, tem o dom de mexer com os complexos de inferioridade mais primitivos do brasileiro que se julga culto, inteligente e civilizado. (Outros veículos estrangeiros podem reduzir o Brasil a farinha de rosca, mas aí quase ninguém liga; país subdesenvolvido é assim mesmo, só leva a sério o que é dito em inglês.) Não é um levantamento de fatos; é um texto de opinião, apresentado como o editorial mais importante da edição. Dizem ali, mais uma vez, que o Brasil está jogado numa fossa infernal, sem emitir sinais de vida ou de esperança, e o pior de tudo é que Bolsonaro não é o único culpado por isso; além dele, há também a desgraça do “sistema político”. 

Mais recente capa da The Economist sobre o Brasil (junho de 2021)

“Deu na Economist”, portanto — e isso, como acontece quando “dá” no New York Times, é uma certidão de que, para o mundinho da política, dos jornalistas e dos empresários que têm viés “social”, qualquer coisa que estiver entre a primeira e a última palavra do texto é a verdade em seu estado mais indiscutível. E se disserem que o Brasil é um subúrbio de Buenos Aires, onde as pessoas usam sombrero mexicano e fazem a siesta da tarde? Continua sendo verdade, dentro da bolha. “Deu na Economist”, e, se “deu” lá, não há mais que discutir. Game over. Não concordou com o que “deram”? Perdeu, playboy.

Vale a pena, depois de tanto tempo, continuar dando confiança para esse tipo de coisa? É uma questão em aberto. The Economist, com a passagem dos anos, vai ficando cada vez mais parecida com um economista — ou seja, lembra cada vez mais um desses madraçais muçulmanos, as escolas onde todo mundo fica repetindo a mesma frase sem parar e, sobretudo, sem pensar. Nas orações dessa espécie ameaçada de extinção, que atualmente tem o seu habitat reduzido às entrevistas da imprensa e às mesas-redondas levadas ao ar depois do horário nobre, o Brasil sempre morre no fim. Na próxima vez ele morre de novo, e assim segue a vida. Mas ele não estava morto? Não interessa. Como escreveu no Twitter o médico Jorge Hallak, um leitor brasileiro, a revista parece estar exibindo sintomas de mal de Alzheimer editorial: esquece mais do que lembra, pelo menos no caso do Brasil, ou vê uma realidade que só é percebida por ela mesma.

Pode ser. The Economist já foi mercadoria que não se imita; hoje, como tantas outras publicações por este mundo afora, é bananeira que não dá mais cacho. Mas a questão, no caso do Brasil jogado na fossa, não é a qualidade relativa da revista ou dos textos que ela publica. É a constatação de que imprensa internacional, hoje em dia, é isso, e o Brasil mostrado lá fora é esse — um Brasil que não existe. Não se trata da imagem que o Brasil tem para o torcedor que está no pub de Londres assistindo a um jogo do Arsenal. Esse aí vai passar toda a sua vida, provavelmente, sem jamais ter lido uma sílaba publicada na Economist — e de qualquer maneira, como a maioria dos demais 8 bilhões de habitantes do planeta, está pouco ligando para o Brasil e para os problemas brasileiros. O relevante, no retrato monstruoso que a mídia internacional apresenta do país, é que pessoas encarregadas de decidir questões práticas acreditam que o Brasil é mesmo assim. Aí fica ruim.

O Brasil que vai votar em 2022 para presidente da República não lê The Economist — a maioria não lê quase nada nem em português, imagine-se em inglês. O novo atestado de óbito que a revista acaba de passar para o Brasil também não muda o preço internacional da soja, nem diminui o volume de água no Aquífero Guarani. Não influi na bolsa, nem na cotação do dólar, nem nas vendas do varejo. Mas o que se diz em suas páginas, e nas páginas da imprensa mundial de elite, forma um Brasil imaginário na cabeça do rebanho de burocratas que vive dentro dos governos dos países ricos. Esse Brasil é um pesadelo de nível africano, ou coisa pior, e esse rebanho tem indivíduos que resolvem coisas práticas. Por exemplo: passagem de gente pelas fronteiras. O resultado é que o brasileiro, pelo único fato de ser brasileiro, não consegue mais viajar para o exterior como um cidadão normal. É um pária, aquele tipo de sujeito de quem não se pode chegar perto, e tem de submeter-se a um tratamento de terceira categoria para ir do ponto A ao ponto B, em qualquer hemisfério.

Esqueça os chiliques das classes jornalísticas nacionais, dos intelectuais e dos banqueiros de investimento de esquerda diante do artigo da Economist; isso desaparece em cinco minutos. O que fica é o prejulgamento, que começa nos reis e vai até o guarda da esquina, contra todos nós. É do Brasil? Então é ruim. É brasileiro? Então não presta. Não se trata apenas de viagens. Trata-se de todo o universo de dificuldades que funcionários de governo, ou quem mais se veja em condição de atrapalhar alguma coisa, pode fazer contra o Brasil nos demais países. Isso não é um “problema de imagem”, que pode ser resolvido, segundo o folclore, contratando uma agência de relações públicas. É uma guerra contra um adversário invisível.

O artigo, em si, não é melhor nem pior do que o mesmo texto básico que a revista embala para os leitores há anos, desde que “a direita” foi para o governo. (“Para o governo”, apenas; nunca se diz que ”a direita” chegou lá porque ganhou uma eleição.) É, essencialmente, uma repetição da novena rezada todos os dias no Jornal Nacional, nos blogs apresentados como “de esquerda” e no circuito OAB-CNBB-etc. Houve, neste caso, alguns momentos editorialmente exóticos — como acontece, por exemplo, na passagem em que o texto fica aparentemente indignado com a piada que Jair Bolsonaro fez sobre a vacina e o crocodilo. Não lhe ocorreu informar ao público, a respeito do assunto, que o Brasil já vacinou mais de 70 milhões de pessoas em quatro meses; só a China, a Índia e os Estados Unidos fizeram melhor que isso. Há, também, trechos francamente cômicos, como a extraordinária revelação de que o ministro da Defesa foi demitido porque não quis que o Exército fosse usado para forçar os comerciantes a abrirem as lojas. Heinnnnnnnn? Como assim? De onde foram tirar isso? Nem uma agência caçadora de fake news, dessas mais bravas, teve a coragem sequer de pensar num negócio desses. Mas, no fundo, não há muita novidade além disso; a coisa toda acaba sendo um clássico em matéria de mais do mesmo.

Os editores não poderiam ter escolhido um momento pior para publicar seu artigo sobre esse Brasil de perdição — castigo que em geral pune jornalistas que escrevem sobre isso ou aquilo sem ter o trabalho de olhar em volta de si, e ver um pouco o que está acontecendo fora da redação. (Com o trabalho em home office, então, aí é que o cidadão não sai mesmo dessa bolha dentro da bolha — uma espécie de buraco negro das bolhas.) O fato é que a revista põe na capa sua denúncia sobre um Brasil mórbido, amaldiçoado e respirando por aparelhos, justo no momento em que o país tem as suas melhores notícias há pelo menos cinco anos. Junto com a publicação do artigo foram apresentados os últimos cálculos sobre o crescimento da economia brasileira este ano, com a covid ainda rolando solta: 5% de janeiro a janeiro, número que, desde as recessões-monstro de Dilma Rousseff, o cidadão pensava não existir mais na aritmética econômica do Brasil.  Pode ser mais que isso — e não há sinais de que o avanço não se repita em 2022, com o término da vacinação e com a recuperação consistente da economia mundial.

Trata-se de um Brasil de fantasia — e, mesmo que esse Brasil existisse, quando é que isso aqui foi muito melhor?

Exatamente agora, também, a bolsa bate recorde sobre recorde, e chega perto dos 130.000 pontos, contra os 94.000 de seis meses atrás. O dólar caiu para 5 reais, sua cotação mais baixa desde dezembro de 2020 — e quem jamais viu neste mundo uma economia em crise terminal, como descreve The Economist, com bolsa subindo e dólar caindo? O saldo na balança comercial, em maio, foi de 9 bilhões de dólares — pode ficar em 75 bilhões de dólares em 2021, 50% a mais que no ano passado. As vendas do varejo, no mesmo mês, foram as maiores dos últimos 21 anos. A safra de soja vai bater mais um recorde em 2021, com quase 270 milhões de toneladas. A entrada de investimentos internacionais no mercado brasileiro voltou a toda — fruto de juros mais altos e com perspectiva de crescer ainda mais para enfrentar os índices de inflação, de novo em alta.

Mais que tudo, é impossível perceber, quando o sujeito sai à rua, onde está esse inferno na Terra descrito pela mídia. Trata-se de um Brasil de fantasia — e, mesmo que esse Brasil existisse, e fosse tão ruim como querem que ele seja, quando é que isso aqui foi muito melhor? Tirando a covid e as suas desgraças, alguém está com saudade de alguma outra época? Qual? Nenhum país que já teve na sua Presidência Fernando Collor e Dilma Rousseff pode estar pior do que já foi. Quem sabe alguém seja lembrado disso, na próxima denúncia da imprensa mundial contra o Brasil? Não vai rolar, é claro. Mas as realidades são o que elas são, e o Brasil, para o bem e para o mal, continuará sendo exatamente o que é — e não o retrato que se faz dele por aí.

Título e Texto: J. R. Guzzo, revista Oeste, nº 64, 11-6-2021

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