Maurício Souza, campeão olímpico em 2016,
teve a cabeça cortada em uma ação injusta
Ana Paula Henkel
A Revolução Francesa foi um divisor de águas na história europeia moderna, que começou em 1789 e terminou no final da década de 1790 com a ascensão de Napoleão Bonaparte. Durante esse período, os cidadãos franceses redesenharam o cenário político do país, desenraizando instituições centenárias, como a monarquia e o sistema feudal. Maximilien de Robespierre, o arquiteto do Reino do Terror da Revolução Francesa, encorajou a execução dos inimigos da revolução que prometeu liberdade, igualdade e fraternidade.
O rei Luís XVI, condenado à
morte por alta traição e crimes contra o Estado, foi enviado à guilhotina. Sua
esposa, Maria Antonieta, teve o mesmo destino nove meses depois. Após a
execução do rei, a guerra com várias potências europeias e intensas divisões
ideológicas conduziram a Revolução Francesa à sua fase mais violenta e
turbulenta. Em junho de 1793, os jacobinos tomaram o controle da Convenção
Nacional dos girondinos mais moderados e instituíram uma série de medidas
radicais, incluindo o estabelecimento de um novo calendário e a erradicação do
cristianismo. Aqui, foi desencadeado o sangrento Reino do Terror, um período de
dez meses em que os inimigos suspeitos da revolução foram guilhotinados aos
milhares.
Eu não poderia deixar de
visitar esse período bárbaro da história mundial e, guardadas as devidas
proporções, abordar o assunto da semana envolvendo o jogador de vôlei Maurício
Souza. Ele foi “cancelado” pela turma da tolerância e do amor por expor sua
opinião sobre um desenho em quadrinhos.
O campeão olímpico teve o
contrato rescindido unilateralmente pelo Minas Tênis Clube depois que os
patrocinadores do time sofreram pressões dos atuais jacobinos virtuais que
tentam de todas as maneiras tirar de circulação aqueles que não rezam a
cartilha progressista da turba do Beautiful People. Em tempos em
que questionar virou crime inafiançável, opinar contra o politicamente correto
virou crime hediondo, com pena de prisão perpétua nos calabouços dos
revolucionários de butique. E opinar, sem ofensas, foi o que Maurício fez.
Em seu Instagram pessoal, Maurício já havia criticado o uso da chamada “linguagem neutra”, mais uma página rasa da agenda de identidade de gênero que cancela sem dó nossa linda língua portuguesa. Nessa postagem, Maurício colocou na legenda: “O céu é o limite se deixarmos! Está chegando a hora de os silenciosos gritarem”. Na semana passada, alguns dias depois da repercussão do lançamento da história da DC Comics em que o filho do personagem Super-Homem se assume bissexual, o jogador postou: “É só um desenho, não é nada demais. Vai nessa que vai ver onde vamos parar…”. Mesmo sendo duramente criticado pelo terrível crime de opinião sobre um desenho — um de-se-nho, vale frisar —, Maurício voltou ao seu perfil e comentou mais um capítulo da agenda nefasta da esquerda radical: a exclusão de mulheres com a inclusão de homens biológicos em esportes femininos. Para isso, Maurício publicou uma foto de Gabrielle Ludwig [foto], atleta transexual que faz parte de uma equipe feminina de basquete universitário. A foto, uma afronta às mulheres, já foi usada por mim em palestras sobre o assunto para mostrar — em claras e gritantes imagens — o absurdo que as mulheres estão sendo obrigadas a suportar caladas para não serem guilhotinadas. Homens biológicos, visivelmente formados com todos os resultados de anos de testosterona, competindo com meninas.
Diante de tamanha atrocidade
protegida por essa política injusta e cruel com as mulheres, Maurício comentou:
“Se você achar algum homem nessa foto você é preconceituoso, transfóbico e
homofóbico. Mais uma conquista do feminismo para as mulheres!”. Não deu outra.
Não foram apenas os jacobinos virtuais que chegaram aos montes à praça das
redes sociais, as guilhotinas, compartilhadas por jornalistas e até atletas,
formaram um corredor revolucionário “do bem”. Não bastava apenas silenciar o
rapaz que pecou contra a agenda jacobina, era preciso mostrar às multidões o
que acontece com os transgressores. É preciso tirar o sustento de um pai de
família, encerrar a carreira de um atleta e destruir seu nome e sua reputação.
Mas, claro, tudo em nome do amor ao próximo.
Inicialmente, antes de decidir
pela rescisão do contrato do jogador, o Minas Tênis Clube, pressionado por seus
dois principais patrocinadores, Fiat e Gerdau, havia apenas afastado e multado
Maurício, além de exigir que ele publicasse uma retratação. E assim ele o fez.
Publicou um pedido de desculpas àqueles que porventura se sentiram ofendidos,
mantendo a defesa sobre a liberdade que todos têm para opinar. Não surtiu
efeito. Maurício, campeão olímpico em 2016 e ainda rendendo como atleta de alta
performance, teve a cabeça cortada em uma ação injusta, orquestrada
milimetricamente.
O mais preocupante de tudo é
que esse não é um caso isolado. É a nova regra, o novo normal que não pode — em
hipótese alguma — ser aceito por nós. Em texto publicado no dia 28 de outubro
em sua coluna na Gazeta do Povo, J.R. Guzzo foi no coração da
questão: “A perseguição desencadeada contra o atleta Maurício Luiz de Souza,
jogador da seleção brasileira de vôlei, é um escândalo destes tempos em que o
totalitarismo, a intolerância e o rancor são impostos à sociedade com violência
cada vez maior pelos movimentos ‘politicamente corretos’. Foi um linchamento,
puro e simples, da reputação e da carreira esportiva de um cidadão brasileiro
que não fez absolutamente nada de errado, e nem outra coisa além de exercer o
direito constitucional à expressão do seu próprio pensamento”.
Ainda dentro desse contexto
que agitou o noticiário, minha grande decepção foi com o técnico da seleção
brasileira masculina, Renan Dal Zotto, exímio ex-atleta que também defendeu o
Brasil nas quadras durante anos, e uma pessoa por quem tenho respeito.
Infelizmente, Renan não aguentou a pressão das guilhotinas chegando à praça
pública. Paralisado com a virulência da movimentação jacobina, ajoelhou-se e
beijou os anéis dos supostos novos reis do pedaço e suas cartilhas
politicamente corretas. Em entrevista ao jornal O Globo, Dal Zotto
afirmou: “É inadmissível esse tipo de conduta do Maurício. Sou radicalmente
contra qualquer tipo de preconceito, homofobia, racismo. Em se tratando de
seleção brasileira, não há espaço para profissionais homofóbicos. Não posso ter
esse tipo de polêmica no grupo”. O técnico marcou pontos gloriosos com a
audiência jacobina, o aplauso fácil veio instantaneamente. No entanto, Dal
Zotto não mencionou a atrocidade, o crime nem a injúria cometidos por Maurício.
Esse cancelamento faz parte de uma pandemia intelectual de proporções
bíblicas
Tive a sorte de ter bons
técnicos na minha carreira como atleta profissional. Alguns me marcaram e
deixaram lições que carrego até hoje. Além de técnicos, eles eram líderes. Nos
erros, nos acertos, na escolha das palavras e nas lições plantadas que, uma vez
proferidas e semeadas, não podem mais ser guardadas. Homens firmes, com
prudência, zelo, sem menosprezar nem descartar a contribuição que podem deixar
na construção do ser humano. Renan não foi capaz de pairar acima das agendas
políticas e mostrar a mão de um líder nato. Seitas ideológicas cobram pedágio,
e Renan pagou o seu para ser poupado.
Mas não se enganem, esse
cancelamento acompanhado de linchamento e perseguição faz parte de uma pandemia
intelectual de proporções bíblicas. Os atuais jacobinos, que prometem lutar
contra a opressão às minorias, estão, curiosamente, apenas militando em países
“opressores” onde há liberdade suficiente para que tanta bobagem seja dita e
colocada em prática, como aqui nos Estados Unidos.
Há três semanas, o comediante
Dave Chappelle cometeu um crime tão hediondo quanto o do jogador do Minas.
Chappelle, em seu novo show na Netflix, disse que “gênero é um fato” e que
“cada ser humano nesta sala, cada ser humano na Terra teve de passar pelas
pernas de uma mulher para estar na Terra. Isso é fato”. Depois ele condenou o
ataque contra as mulheres que não obedecem à teoria de gênero da esquerda. Já
escutaram as guilhotinas se aproximando? Sim, elas foram trazidas, e durante
duas semanas o comediante negro que ousou desafiar o politburo foi amarrado em
praça pública para a exposição que já conhecemos.
Imediatamente, a mesma onda
jacobina que pediu a cabeça do Maurício e de tantos outros que não beijam o
anel invadiu as redes sociais e um dos prédios da Netflix. O que eles pediam?
Um pedido de desculpas? Não. Queriam a cabeça de Chappelle por ele ter dito — o
horror! — que gênero é um fato com homens sendo homens e mulheres sendo
mulheres. Grupos ativistas como o Glaad (Aliança de Gays e Lésbicas Contra a
Difamação, em português) espalharam a falácia de que “o conteúdo anti-LGBTQ”
viola a política da Netflix de rejeitar programas que incitam ódio ou
violência. A Glaad pediu então aos executivos da Netflix que ouvissem os
funcionários LGBTQ, líderes da indústria e o público e se comprometessem a
“viver de acordo com os padrões”. Quando o especial de Chappelle foi lançado em
massa, o grupo disse que a “marca do comediante se tornou sinônimo de
ridicularizar pessoas trans e outras comunidades marginalizadas”. Como outros
artistas da Netflix, Jaclyn Moore, que foi roteirista e produtora do programa
da Netflix Dear White People, foi até as redes sociais inflamar a
militância com comentários do tipo: “Não vou trabalhar com eles (Netflix)
enquanto eles continuarem a lançar e lucrar com conteúdo transfóbico descarada
e perigosamente”.
Bem, praça cheia, guilhotina a
postos, jacobinos babando por sangue. Vamos! O que estamos esperando? Faltou
combinar com Chappelle, que não estava muito disposto a entregar sua cabeça.
Quando perguntado sobre uma greve de funcionários transgêneros na Netflix
depois de o conteúdo de seu show ter viralizado, ele disse: “Para a comunidade
transgênero, estou mais do que disposto a lhe dar uma audiência, mas você não
vai me convocar. Encontro com vocês nos meus termos, onde eu quiser e quando eu
quiser. Não vou ceder às exigências de ninguém”.
Caitlyn Jenner, hoje
transexual e que já foi campeão olímpico no decatlo masculino em 1976, está
apoiando Dave Chappelle em meio à polêmica em torno dos comentários que ele fez
sobre a comunidade transgênero em seu especial da Netflix, The Closer:
“Dave Chappelle está 100% certo”, tuitou Jenner. “Não se trata do movimento
LGBTQ. É sobre a cultura do politicamente correto, do cancelamento. Cultura
enlouquecida que tenta silenciar a liberdade de expressão. Nunca devemos ceder
ou nos curvar para aqueles que desejam nos impedir de falar o que pensamos.”
Diante da postura de
Chappelle, o codiretor-executivo da Netflix, Ted Sarandos, acabou usando o bom
senso e defendeu o especial de Chappelle em vários memorandos para funcionários
da Netflix escrevendo: “Embora alguns funcionários discordem, temos uma forte
convicção de que o conteúdo (do show) não se traduz diretamente em danos
no mundo real”.
Quem me acompanha em outras
plataformas sabe da minha admiração pelo psicólogo canadense e grande pensador
contemporâneo Jordan Peterson. Peterson também já sofreu inúmeras tentativas de
assassinato de sua reputação por parte dos jacobinos do bem. Para isso, ele tem
o seguinte conselho: “Nunca peça desculpas a uma multidão sedenta de sangue.
Você não está lidando com pessoas com quem pode restabelecer um relacionamento.
Você está lidando com uma ideia sem alma que possui pessoas”.
Milhares das mortes na
guilhotina que foram realizadas durante a Revolução Francesa aconteceram sob as
ordens de Robespierre. No entanto, o francês revolucionário, que queria impor
suas ideias com violência e brutalidade, jamais imaginou que seus métodos
alcançariam exatamente o seu pescoço. Robespierre, que dominou o draconiano
Comitê de Segurança Pública, foi executado em 28 de julho de 1794.
A Revolução Francesa se tornou
modelo para outras revoluções nos séculos seguintes, e, como ela, esse tipo
revolução consome seus próprios filhos. O Comitê de Segurança foi levado ao seu
fim vergonhoso tanto por aqueles que não achavam que Robespierre era radical o
suficiente quanto pelos moderados que denunciaram a violência em primeiro
lugar. No final, a guilhotina também foi seu destino.
Título e Texto: Ana Paula
Henkel, revista OESTE, nº 84, 31-10-2021
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