À revelia do buraco escuro em que os portugueses se afundam, a única preocupação do prof. Marcelo é a “estabilidade”, leia-se a fobia dele a incómodos pessoais e ao desamor das massas
Alberto Gonçalves
Enquanto chefe de Estado, o prof. Marcelo costuma dividir-se entre dois tipos de intervenções públicas. A primeira é a que corresponde às corriqueiras obrigações do cargo (desde que o cargo é ocupado por ele, note-se): viajar ao estrangeiro, conviver com líderes corruptos e autocráticos, posar para “selfies”, despir-se à frente das câmaras de televisão, nadar no oceano que se puser a jeito, assistir a jogos da bola, analisar jogos da bola etc. O segundo tipo de intervenções são as que o prof. Marcelo aproveita para dizer coisas tão escabrosas que uma pessoa ouve aquilo e fica a pensar se realmente ouviu aquilo.
A abordagem escabrosa acontece
sempre que, confrontado com assuntos sérios e susceptíveis de lhe beliscarem a
popularidade, Sua Excelência não se limita a despachar os assuntos com uma
frase que é um monumento ao narcisismo e ao desinteresse: “É preciso apurar
responsabilidades, doa a quem doer”. Aconteceu, por exemplo, a propósito dos abusos
sexuais na Igreja, quando o prof. Marcelo considerou que 424 testemunhos não
eram um número “particularmente elevado”. E quando pediu que esquecêssemos a
questão dos direitos humanos no Qatar para nos concentrarmos na seleção de
futebol. E quando, em 2017, resolveu a tragédia de Pedrógão em poucos minutos,
mediante a lendária sentença: “O que se fez foi o máximo que se poderia ter
feito”.
Na passada terça-feira, o
prof. Marcelo voltou a demonstrar a sua portentosa incapacidade para avaliar as
situações – ou a desastrada habilidade para fugir delas. Perguntado por
jornalistas sobre a profusão de trapalhadas governamentais, respondeu: “É bom
para a democracia haver exigência em antigos e novos partidos políticos no
sistema partidário, na comunicação social. O contrário é que seria uma situação
pantanosa. Mais vale ver se há problemas, levantá-los, depois uns são, outros
não são, e isso é uma democracia viva, a ser uma democracia pantanosa”.
Se percebi corretamente, um governo que se esfarela sob o peso de compadrios, incompetência e desonestidade endémica é sintoma de uma democracia “viva”. E por que não dizer pujante? E por que não dizer invejável? E por que não dizer gloriosa? Porque ainda há quem tenha vergonha na cara, a vergonha de habitar um país em que, por meio de anestesia e propaganda, os desastres são convertidos em proezas. “Pântano”, a herança do eng. Guterres, hoje é favor. E saudade. Em qualquer lugar do Ocidente, uma pequenina fracção das misérias perpetradas pela agremiação do dr. Costa seria suficiente para, num ápice, derrubar a agremiação, o dr. Costa e as últimas esperanças na reabilitação do sistema político. Em Portugal, o senhor presidente da República manda-nos agradecer tamanha dádiva.
Toda a gente suspeita que são
as guerras internas no PS a estar na origem da súbita “exigência”, leia-se a
revelação diária dos casos e casinhos que exibem a verdadeira natureza do
partido. E toda a gente suspeita que, à revelia do buraco escuro em que os
portugueses se afundam, a única preocupação do prof. Marcelo é a
“estabilidade”, leia-se a fobia dele a incómodos pessoais e ao desamor das
massas. Porém, é um exercício útil fingir que o levamos a sério e, até para
expor o carácter medonho do seu raciocínio, levarmos o dito às últimas
consequências.
Assim, se uma sucessão inédita
de trafulhices lícitas ou ilícitas mostra que a democracia está bem, uma
quantidade maior de trafulhices mostrará que a democracia está óptima. É, pois,
desejável que venham novas e mais arrepiantes notícias dos desvarios no governo,
e que cada uma seja encarada como sinal de maturidade civilizacional. Já depois
das afirmações do prof. Marcelo, aprendemos que o pai de uma ministra se fazia
passar por advogado e que, talvez por isso, acabou indicado pelo PS para o
Conselho do Ministério Público. É positivo, mas pode melhorar, quiçá se o pai
da senhora tivesse currículo no narcotráfico e a senhora, que afinal se fazia
passar por ministra, fosse nomeada PGR.
Em prol da democracia, tudo
pode ser melhorado, incluindo a história do ex-ministro que aliviou os
contribuintes em 3.200 milhões de euros e se esquece no WhatsApp de
indemnizações de 500 mil (o alívio podia ter sido de 15.000 milhões, e a
aplicação o TikTok). E imaginem o fulgor democrático se, em vez de uma dúzia de
governantes envolvidos em branqueamento de capitais, fuga ao fisco ou fraude
qualificada houvesse três dúzias metidos em culto satânico e homicida. Mal
surgissem suspeitas de canibalismo no “executivo”, a democracia atingia o
nirvana.
O esforço de terça-feira do
prof. Marcelo, a que por cansaço ou banalização ninguém ligou, pretendia varrer
as polémicas passadas e evitar as futuras, de modo a que desistam de o
interrogar acerca da dissolução da AR e ele possa ir a banhos em paz. Não sei
se funcionou. Sei que, ao decretar que a putrefacção do regime é marca do
respectivo vigor, o prof. Marcelo está a tratar a democracia com o cinismo com
que as peixeiras tratam a sardinha, que juram “vivinha” após ser capturada e
sofrer barbaridades antes de cair na grelha. Há muito que o prof. Marcelo ajuda
a preparar as brasas. E, ao contrário da sardinha, ele regressa ao mar.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
4-2-2023
FOTO LEGENDADA DO PRESIODENTE LUGUFULA:
ResponderExcluir- Calma, calma, Papa mingau Francisco... sou espada... me solta, deixa eu pegar o celular desse cara aqui em frente... se essa merda cai na "Intermet...".
Aparecido Raimundo de Souza
de Santo Eduardo RJ