O atentado em Cabul vitimou mais de 170 pessoas
Péricles Capanema
Os norte-americanos não
fugirão da dor.
Em 17 de agosto último postei
no meu blog artigo intitulado “Saturação funesta”, análise primeira, no calor
dos fatos, da retirada norte-americana do Afeganistão (está na rede). Nele
afirmava eu no primeiro parágrafo para deixar bem claro: “Provocada
pelo cansaço, a retirada vergonhosa dos Estados Unidos do Afeganistão
significou a derrota do forte sonhador pelo fraco fanatizado. Um calafrio de
insegurança percorreu de alto a baixo a coluna vertebral de todos os aliados
dos Estados Unidos na região. A opinião pública dos Estados Unidos, no geral,
cansou-se da guerra do Afeganistão. Bateu o desalento. Não aceita mais
sacrifícios. Em especial, os contribuintes, que lá enterraram cerca de 2
trilhões de dólares. Tudo isso estrila nos ouvidos da classe política. Lamento
supor, desejaria que acontecesse o contrário, mas os norte-americanos não
fugirão da dor. Não vai demorar, despencarão multiplicados os sacrifícios sobre
o povo dos Estados Unidos em decorrência da presente atitude do governo de
Washington. De passagem, o maior e mais importante campo de batalha de momento
e nos meses futuros não estará no Afeganistão, mas no interior da opinião
pública norte-americana. Ali se estará decidindo em larga medida o futuro
próximo do povo afegão. E até dos aliados dos Estados Unidos, se não da própria
nação do norte.”
Despencarão multiplicados
os sacrifícios.
Errei feio no prazo que
estimava, em parte por otimismo, acho. E houve gente que achou meu texto um
pouco pessimista. É, a vida ensina. Imaginava que os sacrifícios prenunciados
viriam, mas pensava que não eram iminentes. Precisavam ser imediatos? Foram e o
fato soa como aviso. Em 26 de agosto, antes da evacuação completa das tropas,
marcada para cinco dias depois, atentado monstruoso próximo ao aeroporto
esbofeteou os Estados Unidos.
Valhacouto de celerados.
Vamos adiante. No artigo
citado, escrevi: “O Afeganistão será de novo santuário de organizações
terroristas que ali se prepararão para atacar países do Ocidente”. Santuário
é palavra adequada, digamos, quase um eufemismo, ainda que seja corrente a
palavra entre jornalistas com a acepção de lugar de refúgio onde o fugitivo não
pode ser alcançado. Para o caso afegão seria melhor, pois mais próximo do real,
empregar valhacouto de celerados. O Afeganistão está hoje lotado de
organizações terroristas que se aliam, brigam entre si, preparam atentados,
roubam, sequestram, vendem ópio, cobram “pedágios”, enganam e despertam ilusões
lá e fora de lá. Parte delas, motivos religiosos e étnicos, ainda recebe
doações provenientes de países do Golfo. É o para nós misterioso mundo das
seitas muçulmanas. Entre tais organizações terroristas se alteia o ISIS-K
(Estado Islâmico no Khorasan, braço do antigo Estado Islâmico, mais
precisamente, em inglês, Islamic Stateo fIraq and Syria – Khorasan).
Tem, e é natural, as doutrinas e métodos do Estado Islâmico que anos atrás
atormentou populações enormes em parte da Síria e do Iraque e do qual hoje,
derrotado militarmente, os militantes se abrigam no Afeganistão. Ninguém sabe à
vera, com objetividade, como estão as relações do ISIS-K com os talibãs — se
boas, ruins, aliados de ocasião, se o grupo tem permissão ou não dos talibãs
para perpetrar atentados. Quando muito, suposições plausíveis é do que se dispõe.
E agora o fato novo, o atentado.
Atentado nas imediações do
aeroporto.
Palavras melancólicas.
O presidente Joe Biden reagiu
com discurso duro, embora melancólico. Não prometeu contra-atacar e vencer, não
acenou com vitória, não mostrou determinação de acabar com o terrorismo no
Afeganistão. Assegurou uma coisa, continuar fazendo a retirada em curso de
maneira ordeira e segura: “Estes membros das forças armadas entregaram
suas vidas. Foram heróis. Heróis que se engajaram em uma missão perigosa e
altruísta para salvar a vida de outros. São parte de um esforço de transporte
aéreo e de evacuação. As vidas que perdemos hoje são vidas entregues para o
serviço da liberdade, dos outros e dos Estados Unidos. Aviso aos que
perpetraram este ataque: não perdoaremos, não esqueceremos, vamos caçá-los e
pagarão. Os terroristas não nos deterão. Não interromperão nossa missão.
Continuaremos a evacuação.” Soou aquém do necessário.
Impacto na opinião pública
dos Estados Unidos.
Dizia acima, o cenário mais importante da
crise afegã não está no Afeganistão, é a opinião pública nos Estados Unidos.
Ali se decidirá o caso. Pela primeira vez na administração Biden, o número dos
que aprovavam o presidente (46,9%) passou a ser menor do que a porcentagem dos
que o reprovavam (49,1%). Prestígio caindo. Pode ser que os norte-americanos
estejam em número crescente desagradados com os rumos da política externa. Não
há como negar, foram chocantes a fraqueza, a indecisão e a desorientação
manifestadas pelo governo nos últimos acontecimentos. A saudável reação do
público, talvez já se expressando nos índices de reprovação, é um raio de
esperança. Para os afegãos. Para os Estados Unidos. Para nós.
Título e Texto: Péricles
Capanema, ABIM,
10-9-2021
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