sexta-feira, 10 de março de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Pelo infinito desejo da posse

Aparecido Raimundo de Souza 

Uma história de amor com final inusitado

ME ENCONTRO preso com mais três detentos (num cubículo que mal dá para um), jogado às traças, atrelado em uma sozinhez infame. Nesse então, vegeto as horas curtindo a cela fria e imunda da delegacia, a única existente no prédio da delegacia de polícia de Saltinho do Cágado, um vilarejo escondido e esquecido no meio do nada. A cidade mais próxima, Boricoxó do Alegre, dista exatos seiscentos quilômetros. O acesso à Saltinho do Cágado é feito por uma estrada cheia de curvas fechadas e sem asfalto. Por toda a extensão, buracos de todos os tamanhos e pontes prestes a ruírem de uma hora para outra se fazem presentes.  

O crime cometido? Ter levado a Isabela (com consentimento dela) para o meio da mata fechada, jogado seu belo e atraente corpo ao chão que margeia as linhas de trens que cruzam a localidade e feito sexo com ela. A princípio, ela queria. Aliás, sempre quis. Até hoje não disse nada em contrário. Me disse, num desses nossos encontros (antes de eu cair nas garras do delegado), que era vontade dela romper a sua virgindade comigo, custasse o que custasse. Depois disso, ficou sumida por mais de uma semana. Procurei a encantada por todos os lados possíveis e imagináveis e nada. Por acaso, quando menos esperava, a encontrei na birosca do Salamandro.  

Meu coração, nessa hora, pulou. Quase saiu do peito em explosão descomedida. Entrei esbaforido e corri a me sentar com ela. Antevendo o que rolaria, me deixei levar pela alegria do sexo fácil prometido. Isabela trajava a mesma vestimenta com a qual a vi da vez primeira. Uma camiseta branca, a sainha vermelha muito curta, deixando, à mostra, a calcinha da cor de seus olhos verdes claros. Tinha a pérola nacarada, vinte e nove anos, todavia, vista assim, qualquer maluco daria menos. Existia, outrossim, uma barreira de janeiros se interpondo entre nós. Enquanto ela sorria nos vinte nove, eu zurzia as aflições dos meus sessenta e nove.  

Linda de morrer, Isabela se assemelhava a uma bonequinha de vitrine. No geral, uma gatinha difícil de ser esquecida. Ficamos sentados numa mesa, acolhidos por um canto ermo do espaço enorme, longe de olhares curiosos por quase duas horas. Nesse interregno, patrocinei seus apelos de fome com várias latinhas de refrigerantes seguidas de uma dezena de porções de batatas fritas. Enquanto a admirava comendo, lembrei de como a conheci. Eu a flagrei vagando pela rua empoeirada (a única existente), umas três ou quatro vezes. A linda raridade dormia ao relento, ou mais precisamente no piso frio do coreto em frente à igreja de Santa Madre Corinha do Cantagalo, padroeira da comunidade. 

Trocamos algumas palavras, e, depois disso, ela deu uma sumida básica. Pensei que houvesse pegado a estrada e voltado para Boricoxó do Alegre ou seguido em frente, indo parar em Sovaco da Cobra de Pedra, uma outra vila de menor porte que Saltinho do Cágado, distante uns quarenta quilômetros. Perguntando daqui, indagando dali, descobri que ela não fora nem para adiante, nem regressara. Estava em casa de uma senhora bondosa que a acolhera com seus molambos e dissabores. Bati numa tarde em tal residência e me avistei com ela por longo tempo. Trocamos olhares afogueados e, num desses encontros, “a depois”, ela se mostrou propensa, renovando o que havia dito antes, ou seja, a vontade de se entregar, inteira, a mim. 

Uau!... ainda pura, apesar dos vinte e nove. Fugira de casa por morte recente da mãe e seu pai, beberrão inveterado, queria abusar dela. Medrada, certa noite pegou a estrada e sumiu sem rumo de volta. Veio parar em Saltinho do Cágado e se fez moradora de rua, até que uma velhinha de alma enternecida, dona Preciosa, ao sair da missa, se comovendo com a sua desdita, resolveu lhe dar abrigo, cama e comida. Em troca, a hóspede ajudaria na conservação da residência, molharia as plantas, cuidaria das galinhas e, nos domingos, ajudaria o padre Botucatu a guardar os apetrechos usados na missa, e, em seguida limparia a igreja e a sacristia. 

A coisa toda da minha prisão aconteceu depois que a Isabela voltava da quitanda. Ainda a ajudei com as sacolas de compras até o portão de dona Preciosa, e, meia hora à frente, saímos de mãos dadas e seguimos em direção a uma espécie de mata fechada, que se formava logo após os trilhos da estrada de ferro que corta as redondezas. Assim que chegamos, doido de pedra, o sangue em fervura, parti para os finalmentes, sem dar um minuto a mais de folga à presa e a atocaiei com o furor que me consumia debaixo de um acolhedor abacateiro. Em excitação desvairada, lhe arranquei a blusa de malha, o vestido amarelo, a minúscula calcinha e parti para o abraço. 

Deitado sobre ela, nossos corpos suados, despidos de quaisquer medos ou receios, nos consumimos sem preconceitos num amor louco e indescritível. Foi quando, do nada, apareceu o doutor Chinfrânio Carrapeta, delegado de polícia acompanhando de um outro policial civil. Ao se aproximarem juntos, e, justo naquela hora amarga do bem-bom, eu entorpecido pela paixão, tapava a boca de Isabela, justamente com a calcinha dela. Ao se deparar com a cena, o delegado puxou da arma e me deu voz de prisão, enquanto o colega de distintivo pedia ao meu amor que se recompusesse. Tentei explicar, mas o delegado não me quis dar ouvidos. 

Me levou preso e me jogou nesta cela imunda que me encontro agora. Faz mais de sessenta dias, desde então. O sujeito preparou o flagrante, ouviu as testemunhas que nos viram na birosca, nelas a inclusão do Salamandro. As únicas almas piedosas que falaram bem de mim: dona Preciosa, Isabela e o padre Botucatu.  O inquérito foi enviado para o fórum, porém, o juiz e o promotor só aparecem por estas bandas, quando a coisa é muito urgente. Segundo o representante da ordem, meu caso não é importante e ele me disse que não tem interesse em buscar o juiz, tampouco o promotor de justiça. Ambos vivem em Boricoxó do Alegre. 

Alegou, para tirar o seu da reta, que a gasolina está muito cara. Por aqui não existe telefonia celular, muito menos fixa. Estou, pois, jogado às traças. Sem advogado, à espera de um magistrado que não tem dia certo para definir em favor ou contra a minha liberdade. Dona Preciosa vem me ver todos os dias. Traz meu café da manhã, almoço, o lanche da tarde, e, a noite, o jantar. Na derradeira vinda, me revelou que o delegado proibiu terminantemente a Isabela de se aproximar de mim. Isabela tem escrito várias cartas, mas o maldito chefe de polícia segura todas na hora da revista, deixando que entre somente as refeições endereçadas pelas duas almas caridosas que tenho guardadas dentro de peito, num cantinho secreto. 

Não fossem elas, eu estaria literalmente perdido nesse maldito cafundó de mundo. Cinco meses. Nada. Sete, idêntico quadro. Na cela onde estou à disposição da justiça, como disse acima mais três elementos. O Juca, matou a mãe e o pai para ficar com a herança. Deu zebra. Foi condenado e espera, desde a batida do martelo, para ser transferido para o presídio em Boricoxó do Alegre. O Bufão esfaqueou uma velhinha de noventa anos que está internada em estado grave no hospital local. Também espera pelo juiz e promotor. O Pedro Moisés veio de Sovaco da Cobra de Pedra e foi tirado de circulação por roubar uma quantidade enorme de varas de porcos do doutor Fulaninho Bezerra, criador desses animais e dentista prático. Aguarda dia e hora para ir à audiência inaugural. 

Minha situação é a das piores. E bota muitos “piores” nisso. Não pelo fato de ter sido pego de calças curtas com a Isabela. O desgraçado do Bufão, cismou comigo e quer que eu seja a mulherzinha dele. Tardão da noite, enquanto os demais dormem, ou fingem, ele se achega e me ataca. Me faz promessas de amor, recita poesias, canta Roberto Carlos e agora, deu para falar em casamento. Semana passada, acordei com ele bolinando as partes. Gritei, me esgoelei, todo mundo despertou para a realidade. Foi o diabo. Essa noite, ele voltou à carga. “Minha flor do lácio – disse a certa altura. Hoje você será minha. Veja como estou por sua causa. Espie!...”. Impensadamente, incontrolavelmente, saltei do chão onde dormia, e parti para cima do desgranhento. 

CONCLUSÃO FINAL: Bati com a cabeça de Bufão na grade. Bati, com vontade, com raiva e ódio. Bufão parou de bufar e veio à óbito. Fui contido pelos que dividem o cubículo. Em seguida, me vi agarrado e algemado pelos policiais que acorreram em face dos pedidos de socorro que violentaram a calmaria da noite. Manhã seguinte, frente da delegacia, a cidadezinha em polvorosa. Jornalistas e repórteres vieram de helicóptero, de Boricoxó do Alegre, querendo me entrevistar e saber os motivos de tanta fúria. Não faltaram o delegado Chinfrânio Carrapeta, o padre Botucatu, a minha linda e estonteante Isabela e dona Preciosa. Ah... antes que me esqueça: na leva, vieram o promotor de justiça e o juiz. Chegaram os dois representantes, de mãozinhas dadas. O promotor é uma bicha assumida e o juiz além de caolho, pederasta. Moram juntos. Nada contra. Finalmente, meu simplório caso de amor, se tornou URGENTE. 

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha no Espírito Santo, 10-3-2023  

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